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Neil Peart, o renascentista

Combate Rock

15/01/2020 19h00

Candice Soldatelli (*) – especial para o Combate Rock

Em 18 de fevereiro de 2016, Neil Peart, baterista do Rush, escreveu um email para mim. Eu recém havia terminado a tradução de "The Masked Rider – O Ciclista Mascarado", para a Editora Belas Letras e, como de costume, antes da revisão final, eu tinha uma lista de perguntas para o autor.

É incrível pensar que uma lenda do rock e um intelectual da magnitude de Neil Peart se dispusesse a responder às dúvidas de uma tradutora que vive num lugar remoto do Sul do Brasil.

Mr. Peart, como eu o chamava, sempre demonstrava imensa boa vontade e empatia pelo meu ofício  de transpor de uma língua para outra as palavras de um autor, um trabalho exigente, complexo, gratificante, mas sempre desafiador. Porque, na verdade, não se trata apenas de palavras: a responsabilidade que recai sobre nós, tradutores, é também de encontrar a voz desse autor numa língua estrangeira.

E como encontrar a voz de alguém como Neil Peart em português? Por muitas vezes e em muitos momentos da minha carreira me considerei inapta para tal tarefa, totalmente intimidada por causa do alto nível de vocabulário e de construção de imagens do escritor, e ainda mais por ser uma fã incondicional do Rush desde muito novinha.

Só que alguém tinha que tomar para si a missão de traduzir para a língua portuguesa seus livros, e uma série de coincidências – com uma dose de audácia ou talvez de ingênua e total falta de noção –  me levou à maior oportunidade e à maior realização da minha carreira.

Tudo começou com o Rush, obviamente. Assisti ao documentário "Beyond the Lighted Stage" em meados de 2011, e até então Neil Peart era "apenas" o melhor baterista de todos os tempos (embora ele próprio contestasse isso) e letrista da minha banda favorita. Mas foi com o documentário que soube dos livros.

Já havia lido alguma coisa no site dele, neilpeart.net (que desde a notícia de seu falecimento está fora do ar, no endereço há apenas uma das últimas fotos de divulgação usadas pela Anthem, produtora do Rush), mas não fazia ideia de que, até aquela data, ele há havia publicado quatro livros pela editora canadense ECW.

No documentário, Peart fala da sua paixão pela leitura e de como nos longos anos de turnê com a banda os livros serviram de "educação portátil" entre uma passagem de som e outra, já que ele nunca frequentou uma universidade e tinha abandonado o ensino médio sem concluir os estudos para se dedicar à música.

Um dos destaques do documentário para mim foi a história que gerou a obra "Ghost Rider" e o álbum "Vapor Trails". Assim que terminei de assistir o vídeo, entrei no site da Amazon e comprei este e outros livros do "Professor" para ler nas férias de verão que se aproximavam.

Se eu já me encantava com a profundidade e a filosofia das letras do Rush, como não adoraria os livros? Li "Ghost Rider" primeiro, E foi um livro que alterou completamente a percepção que eu tinha do luto.

Quis indicar o livro para alguns amigos que não sabiam inglês e fui procurar a obra em português. Para minha enorme surpresa, o livro jamais havia sido publicado aqui no Brasil. Entrei em contato com a Editora Belas Letras e recomendei o livro.

A editora adquiriu os direitos autorais de Ghost Rider e me solicitou um teste para traduzir e cá estou: oito anos depois, três livros já publicados no Brasil – "Ghost Rider: A Estrada da Cura", "Far and Away: Longe e Distante" e "The Masked Rider: O Ciclista Mascarado" – e mais um com lançamento marcado para março: "Traveling Music: Música Para Viagem".

Este último será o primeiro sem a ajuda do autor para tirar as dúvidas. Me sinto praticamente órfã, novamente solitária na tarefa de buscar a voz do autor. Há alguns meses tentei entrar em contato com ele, e as informações que chegavam até mim eram meio desencontradas, ora estaria de férias, ora viajando de moto.

Não insisti, porque havia tempo para concluir a revisão do livro, com lançamento previsto para março deste ano. Contudo, nunca houve tempo: fico muito triste em pensar que, devido ao câncer no cérebro, Neil Peart já não tivesse condições físicas ou cognitivas para nossa troca de ideias usual sobre sua obra.

Pensando agora, era estranho o fato de que, neste tempo todo desde sua aposentadoria do Rush em 2015, ele tenha escrito e publicado apenas mais um livro, "Far and Wide" (ainda sem título em português) em 2016, e que as crônicas publicadas no site tenham se tornado cada vez mais raras.

Hoje tudo faz sentido: enquanto achávamos que Neil Peart estava finalmente aproveitando a vida ao lado de sua esposa Carrie e de sua filhinha Olivia, o Professor na verdade travava uma batalha perdida contra um dos tipos de câncer mais agressivos de que se tem notícia. Saber disso tem tornado ainda mais difícil aceitar a perda de meu grande mentor e da minha grande inspiração como intelectual e como ser humano.

Neil Peart foi um renascentista da nossa época. Tudo o que ele fazia, todas as coisas às quais ele se dedicava – até mesmo seus hobbies como observar pássaros e estudar história e geologia, as crônicas de viagem tão lindamente narradas em seus livros –  eram com critério, com cuidado, com curiosidade, com excelência, seja na música, na literatura, na filosofia, seja na visão humanista de contribuir para um mundo melhor.

No comunicado oficial do Rush, Geddy Lee e Alex Lifeson pedem doações a institutos de pesquisa para a cura do câncer em nome de Neil Elwood Peart. Portanto, encerro este texto indicando uma instituição brasileira  caso vocês também queiram honrar o legado do Professor dessa forma: Grupo de Apoio ao Adolescente e à Criança com Câncer – https://graacc.org.br/doar/

(*) Candice Soldatelli é tradutora e fez as versões brasileiras dos três livos de Neil Peart publicados no Brasil

 

 

Sobre os Autores

Marcelo Moreira, jornalista, com mais de 25 anos de profissão, acredita que a salvação do Rock está no Metal Melódico e no Rock Progressivo. Maurício Gaia, jornalista e especialista em mídias digitais, crê que o rock morreu na década de 60 e hoje é um cadáver insepulto e fétido. Gosta de baião-de-dois.

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O Combate Rock é um espaço destinado a pancadarias diversas, com muita informação, opinião e prestação de serviços na área musical, sempre privilegiando um bom confronto, como o nome sugere. Comandado por Marcelo Moreira e Mauricio Gaia, os assuntos preferencialmente vão girar em torno do lema “vamos falar das bandas que nós gostamos e detonar as bandas que vocês gostam..” Sejam bem-vindos ao nosso ringue musical.
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