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O golden shower de ‘Joe’s Garage’; 40 anos da obra em 3 atos de Frank Zappa

Combate Rock

20/10/2019 06h58

Caio de Mello Martins – publicado originalmente no site Roque Reverso

Dentre tantas coisas que imaginamos ver Frank Zappa fazendo se ainda estivesse vivo hoje, uma delas seria pensar que resposta Zappa daria no twitter para a pergunta de Jair Bolsonaro "O que é Golden Shower?"…

Uma coisa que a psicologia diz sobre os tiranos é que, quanto mais defeitos eles imputam aos seus inimigos, mais eles dizem sobre si mesmos. Como o narcisismo gigante de suas personalidades os impedem de admitir seus próprios defeitos, a única maneira que um tirano tem de enxergar seus vícios é projetando-os sobre os outros.

E é nessa lógica de sinais invertidos que aprendemos com os tiranos que a normatização da sexualidade e a objetificação da mulher não é o fim de cristãos fanáticos, mas sim de pedagogos e sexólogos; que a exploração predatória e criminosa das riquezas e do território amazônico é o objetivo de ONGs ambientais, e não de grileiros e fazendeiros; que quanto mais religioso, patriarcal e ufanista for o discurso de um professor, "menos ideologia" a sala de aula vai ter, e por aí vai…

Há 40 anos, Zappa escrevia "Joe's Garage", espécie de peça em três atos que descreve uma das histórias mais sórdidas, escatológicas e perversas já gravadas em vinil.

O álbum conta a saga de Joe, a perfeita representação anônima do americano médio ("Average Joe"), desde sua adolescência nos gramados suburbanos dos Estados Unidos. Assim que tem a ideia de montar sua própria banda, Joe cai em desgraça e termina preso por (em termos gerais) ser um obcecado por música em uma sociedade que despreza a cultura e (mais especificamente) por danificar patrimônio alheio depois de mijar sobre um robô erótico.

Mais do que destilar sua marca de humor escrachado – canções como "Catholic Girls", "Crew Slut" e "Why Does It Hurt When I Pee?" são auto-explicativas –, Zappa está interessado em mostrar o que essa ópera-rock pode revelar sobre o inconsciente de quem a conta.

Joe é obviamente o "herói" da história, mas os holofotes do álbum estão centrados mesmo na sarcástica figura do Central Scrutinizer, deliciosamente interpretado por Zappa.

Trata-se de um burocrata estatal que, nas suas próprias palavras, está encarregado de "reescrever a Constituição de forma a acomodar 'O Futuro'" e "fazer valer leis que ainda não foram aprovadas no Congresso" – sendo que, em sua visão, a criminalização da música é projeto de lei de última importância.

Joe é, portanto, a ficção dentro da ficção, a personagem central dentro da parábola moral narrada pelo Central Scrutinizer no intuito de alertar os "incautos" cidadãos norte-americanos sobre os perigos da música, "insidiosa" e "temível" forma de lassidão moral que há décadas "corrompe" o vigor da juventude e destrói os caros fundamentos das nossas tradições.

Pois bem, essa propaganda ideológica continua ao modo dos mais tacanhos vídeos anti-drogas (a maconha que leva à cocaína que leva ao crack etc). Joe ensaiava com sua bandinha na garagem e passa a despertar a fúria da vizinhança, o que o coloca em rota de confronto com a polícia; depois de levar uma "prensa", ele é mandado à Associação Cristã de Moços, descrita pelo escrutinador central como um antro de putaria tolerado por padres de sexualidade ambígua; não obstante, Joe engata um namoro com uma tal Mary e passa seus dias "de mãos dadas e com pensamentos puros", até que a turnê de uma grande banda de rock passa pela cidade e Mary, seduzida pelos músicos, abandona Joe para se tornar groupie.

Quando, solteiro, Joe contrai gonorreia ao tentar esquecer Mary com outra garota, o protagonista chega ao fundo do poço. Joe então se volta à religião e descobre um descolado guru que prega que só há um jeito para a humanidade encontrar a plena felicidade: praticar sexo com máquinas.

Em um dos cultos da "Igreja de Aparelhologia" (Appliantology no original), Joe se encanta com um robô sexual todo paramentado com enormes consolos e outras ferramentas do prazer, porém a noite termina mal: satisfazendo todas as taras possíveis com o modelo XQJ-37 nuclear powered pan-sexual roto-plooker, Joe dá perda total no robô depois de um Golden Shower e, sem dinheiro para ressarcir a igreja, é preso.

"Sy… speak to me!! Woah nooooo!!! The GOLDEN SHOWER must have shorted out his master circuits… He's – oh my God – I must have 'plooked' him to death – hey…"

A esta altura, a sociedade norte-americana já se encontra totalmente transfigurada com a concretização da proibição da música, tendo os Estados Unidos se transformado numa nação fundamentalista em que apenas um culto é tolerado – o da mercadoria.

O espaço público é dominado exclusivamente pelas regras da "White Zone", um espaço em que é permitido apenas "carregar ou descarregar" e que dirige e disciplina as energias da população para o consumismo desenfreado.

Joe passa anos na prisão sendo "gang-bangueado" por seus colegas de cela, todos eles músicos ou executivos de gravadoras. Após cumprir sua pena, o herói, condenado a viver em um mundo sem música, passa seus dias em transe buscando refúgio em notas e canções imaginárias, até que um dia Joe se dobra à realidade e arranja "um bom emprego".

E é assim que um sonho banal de estrelato se torna, no relato do Central Scrutinizer, o ponto de partida para uma bola de neve de perversões sexuais, DSTs e humilhações que vão desaguar na morte existencial de Joe, fazendo dele o estigma a ser evitado. Realmente, o pecado está nos olhos de quem vê…

Atravessada por consolos, cus, orgias, abusos e objetificação sexuais, a história de "Joe's Garage" pretende mostrar que toda a relação de dominação tem subjacente a si uma forte carga erótica, permeada por sentimentos como culpa e crueldade.

Não é à toa que tiranos e líderes fascistas têm pavor de prazer: o poder deles emana dos sistemas de códigos e regras baseados na hierarquia – relações de dominação e submissão são estabelecidas entre os diferentes estratos, que possuem um papel pré-definido no funcionamento do todo e que são motivados por um conjunto de punições e recompensas. É por isso que na visão de um algoz como o escrutinador central o sexo aparece sempre como algo degradante ou violento.

Tentador e imperioso, o sexo, como elemento ligado ao princípio do prazer, desagrega a harmonia do grupo, dispersa a disciplina e energia necessárias à performance de todas aquelas tarefas diárias que constroem o ritual coletivo de pertencimento social. Urge aos tiranos reprimir o sexo e demonizá-lo como algo que expõe o indivíduo ao risco de ostracismo.

Retomando os conceitos freudianos de psicologia das massas, Theodor Adorno, em um ensaio escrito no pós-2ª Guerra Mundial, aponta para os "filhos da cultura de massa estandardizada atual, amplamente despojados de autonomia e espontaneidade" que formaram a base social e política para o fascismo.

É uma massa composta por indivíduos sem filiação a qualquer classe, impotentes e frustrados em suas ambições, que compõem o rebanho de líderes autoritários calcados na figura do "grande homem comum": são líderes que veiculam um discurso impregnado da visão de mundo preconceituosa e simplista de seus seguidores – geralmente voltada contra uma extensa lista de inimigos.

Este processo psicológico de identificação com o líder faz com que a massa se sinta investida de poder, pois se vê representada nos altos círculos por alguém que lhe reflete a mesma tacanhice e pequenez de espírito.

Penúltima música da obra, a quasi-instrumental "Watermelon in Easterhay" – um dos mais belos solos do bigodudo, ou o último "solo imaginário" de Joe – incide tons de melancolia à conclusão do álbum.

A trajetória da personagem, que vai da garagem à fábrica da "Cozinha Experimental da Companhia Pública de Muffins", satisfaz o desejo de vingança do Central Scrutinizer – ele, assim como todos aqueles que se encontram engajados dentro de uma sociedade totalitária, fazem a patrulha moral para garantir que a miséria seja partilhada por todos: projetos e prazeres individuais não são permitidos, e a intelectualidade apodrece em um civilização em que o sacrifício de todos por todos é a única atitude tolerada.

A ideia de Zappa de usar a premissa da proibição da música para denunciar formas de abuso de poder – seja por parte da onipotência do Estado, seja por parte do filisteísmo da sociedade de massas – foi confessadamente inspirada pela Revolução Islâmica que ocorreu naquele mesmo ano de 1979 no Irã, e que teve como uma das consequências a proibição da música e de sua difusão.

Diante da ascensão, nos EUA da época, do fundamentalismo cristão e de seitas religiosas altamente fraudulentas como a Cientologia (satirizada no álbum pela "Igreja da Aparelhologia"), faz sentido que Zappa tenha brincado com a visão de um país tomado pelo revisionismo e censura de uma doutrina ultra-conservadora.

Por outro lado, Jello Biafra já cantou que "aqui nos Estados Unidos fizemos muito melhor que os aiatolás: usamos a música para pôr os cérebros da população em sono profundo". A indústria fonográfica é e sempre foi uma grande aliada do status quo, e sua forma massificada em nada contribui, como Adorno diz, para a "autonomia e espontaneidade" do indivíduo. Entretanto, este que vos fala não consegue pensar em Maroon 5, Coldplay, Ariana Grande e tantos outros soporíferos oportunistas regurgitadores de clichês sem pensar na "White Zone" de "Joe's Garage", idealizada pelo Central Scrutinizer após a abolição da música, e que surge ao mesmo tempo como um paraíso do descartável e como o único espaço permitido (e vigiado) de sociabilidade.

"Joe's Garage" não é perfeito e nem tem a pretensão de o ser. Zappa concebeu o plot durante as gravações, ou seja, não havia a intenção original de formar uma unidade temática com as canções – o que equivale dizer que a concepção dessa ópera rock é produto antes de mais nada da caótica e borbulhante criatividade de Zappa.

Para se ter uma ideia, os dois discos que formam "Joe's Garage" foram respectivamente a quarta e a quinta bolacha que o músico lançaria APENAS em 1979 – o primeiro disco, trazendo o Ato I, foi lançado em setembro; dois meses depois viria o segundo disco, concluindo a história com os Atos II e III.

Frank Zappa usou o álbum como laboratório para uma técnica de estúdio que ele batizou de xenocronia, que consistia em usar solos de guitarra anteriormente captados em shows e transplantá-los para novas composições – a sobreposição resultaria em combinações acidentais e aleatórias entre as tonalidades e andamentos de dois contextos diferentes. A coisa nem sempre funciona, e lá pelo final do segundo álbum, a maioria das canções que passaram pelo tratamento "xenocrônico" perdem foco e divagam à deriva.

À medida que o álbum avança, a banda descreve um desfile eclético de estilos, passeando com igual desenvoltura por jazz fusion, disco fusion, doo wop, dodecafonismo, reggae e blues-rock.

Essa mistura anárquica de referências de arte lowbrow e highbrow também se reflete no modo hábil com que Zappa conduz a narrativa: encarnando o Central Scrutinizer, Zappa combina o discurso pomposo e doutrinador de um narrador escrupuloso com tiradas vulgares.

Em outro flanco, Zappa recrutou todos os seus músicos para dar voz a cada um dos personagens. O fato de nenhum deles ser ator não prejudica a qualidade do show: as interpretações cômicas mostram o quanto os músicos estão conscientes da ridícula moral tortuosamente veiculada pelo escrutinador central. Ou seja, a história é ao mesmo tempo caricaturizada e carregada de metalinguagem.

"Joe's Garage" pode ser acossado pela visão cínica e amarga de seu autor, porém o sentimento que prevalece após a última música é a diversão que estes caras tiveram nessa tentativa falha (portanto humana) de decifrar o mundo moderno. A troça dadá e o espírito jovem continuam sendo o melhor antídoto para a alma.

Sobre os Autores

Marcelo Moreira, jornalista, com mais de 25 anos de profissão, acredita que a salvação do Rock está no Metal Melódico e no Rock Progressivo. Maurício Gaia, jornalista e especialista em mídias digitais, crê que o rock morreu na década de 60 e hoje é um cadáver insepulto e fétido. Gosta de baião-de-dois.

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O Combate Rock é um espaço destinado a pancadarias diversas, com muita informação, opinião e prestação de serviços na área musical, sempre privilegiando um bom confronto, como o nome sugere. Comandado por Marcelo Moreira e Mauricio Gaia, os assuntos preferencialmente vão girar em torno do lema “vamos falar das bandas que nós gostamos e detonar as bandas que vocês gostam..” Sejam bem-vindos ao nosso ringue musical.
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