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A menina Ághata nos lembra: morremos um pouco mais a cada dia

Combate Rock

22/09/2019 13h01

Marcelo Moreira

FOTO: REPRODUÇÃO INTERNET

Uma comissão da verdade assusta mais do que um inimigo externo poderoso. As revelações que emergem do fundo da memória, mesmo que sem a previsão de punições, doem muito e são capazes de destruir a autoestima de uma nação.

Em uma das incontáveis sessões de revelações na África do Sul pós-apartheid, por volta de 1997, um motorista negro chamado Sam Akhor confrontou um oficial de polícia branco da cidade de Johannesburgo. Era o chefe de um departamento cujos policais tinham matado um de seus irmãos, dois primos e um vizinho na primeira metade dos anos 80.

"Ser negro na África do Sul era morrer um pouco todos os dias", disse Akhor na frente do então ex-policial. "A gente saía de casa, apanhava um pouco da polícia e via nossos amigos morrerem apenas por serem negros e quererem viver de forma decente. Qual foi o crime de cometemos?"

"Nós sempre tivemos medo de vocês. Nunca ficamos tranquilos e sempre achamos que vocês um dia nos exterminariam. Crescemos sempre pronto para a guerra", respondeu o ex-policial demonstrando um certo arrependimento, mas sem pedir perdão.

Esses relatos contam das milhares e milhares de páginas das comissões da verdade sul-africanas que foram publicadas em livros e nos jornais do país. A ideia era purificar almas e conciliar dois povos separados pela cor da pele e por um muro gigantesco de ignorância.

A morte da menina Ághata Félix, de 8 anos, baleada por policiais militares no Rio de Janeiro, segundo a acusação de familiares, é um daqueles capítulos que certamente terão destaque em uma futura comissão da verdade.

O caso será dissecado e ganhará novo destaque, embora por pouco tempo. Será um registro importante da história, mas infelizmente não passará disso.

Os policiais militares do Rio de Janeiro foram desde sempre preparados para combater inimigos. Incutiram na cabeça que o povo era o inimigo ainda lá nos anos 80. Aprenderam a temer e a odiar qualquer um que não "obedecesse" ou que "transgredisse" qualquer lei e qualquer regra.

Os PMs cariocas, assim como os paulistanos, odeiam porque têm medo. Disseram eles que teriam de enfrentar uma "guerra" para combater o crime – qualquer crime -, mas jamais foram preparados para entrar numa "guerra".

Como o braço armado de um Estado repressivo desde sempre – que foi incapaz de conter a pobreza e a miséria em mais de 100 anos de regime republicano -, coube às polícias manter a ordem e os sentimentos revoltosos sob controle à base da bala e do cassetete. Na base da pancada e da porrada.

No Rio de Janeiro, neste triste fim de semana, cada carioca morre um pouco todo dia quando sai de casa. Morre um pouco toda vez que lê ou ouve que uma criança foi baleada e morta em "confrontos" entre raficantes e entre "bandidos" e policiais.

O carioca morre todo dia um pouquinho quando um vizinho da comunidade apanha da polícia ou quando não volta para casa, vítima de bala perdida e da imcompetência administrativa que sangra o sistema público de saúde na cidade do Rio de Janeiro e no Estado depauperado.

O carioca morre um pouco todos os dias quando acorda e tem de sair pela manhã de casa e enfrentar um território conflagrado sem saber se conseguirá voltar mais tarde.

Também morre um pouco quando vê crianças se jogarem no chão em uma sala de aula para escapar dos tiroteios nas redondezas. Quando vê crianças tremerem ao escutar o barulho dos helicópteros da polícia ao sobrevoarem as comunidades.

O carioca morre todos os dias quando constata, diariamente, que o Estado os abandonou. E que, além de abandonar, os trata como inimigo em uma guerra civil prolongada e não declarada.

Segundo dados do próprio governo fluminense, as polícias do Rio mataram 1.249 pessoas entre janeiro e agosto de 2019 na cidade – no ano passado, foram 1.075, ou seja, um aumento de 16,2%. Como não classificar esse clima de guerra civil?

A menina Ághata é mais um símbolo da morte violenta cotidiana de uma metrópole conflagrada tendo como pano de fundo a imensa corrupção de colocou na prisão quatro ex-governadores e inúmeros deputados estaduais.

E, infelizmente, traz à memória duas músicas emblemáticas a respeito do caos violento em que vivemos – e que é estimulado por um presidente e um governador irresponsáveis, que pregam a destruição de um suposto "inimigo".

"Polícia", dos Titãs, é uma lembrança óbvia pois, afinal, "ela existe para nos proteger" (!!!!!!!). A outra, "S.O.P. (Sistema Padrão Operacional)", é da banda paulista Escombro, do álbum "Maldita Herança", de 2017. É uma crítica genérica à forma como as polícias brasileiras operam no dia a dia. As duas canções, infelizmenter, representam o período de trevas em que estamos inseridos.

Sobre os Autores

Marcelo Moreira, jornalista, com mais de 25 anos de profissão, acredita que a salvação do Rock está no Metal Melódico e no Rock Progressivo. Maurício Gaia, jornalista e especialista em mídias digitais, crê que o rock morreu na década de 60 e hoje é um cadáver insepulto e fétido. Gosta de baião-de-dois.

Sobre o Blog

O Combate Rock é um espaço destinado a pancadarias diversas, com muita informação, opinião e prestação de serviços na área musical, sempre privilegiando um bom confronto, como o nome sugere. Comandado por Marcelo Moreira e Mauricio Gaia, os assuntos preferencialmente vão girar em torno do lema “vamos falar das bandas que nós gostamos e detonar as bandas que vocês gostam..” Sejam bem-vindos ao nosso ringue musical.
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