A volta da censura escancara a guerra cultural no Brasil
Marcelo Moreira
"Swing Kids" é um filme cult norte-americano de 1993, que trata de um tema pouco escrito e explorado: o cotidiano de artistas e estudantes que estavam sedentos por cultura global nos anos 30 e 40 na Alemanha, durante a ditadura nazista.
No Brasil recebeu o nome de "Os Últimos Rebeldes" e foi dirigido com inteligência e sutileza por Thomas Carter, baseado em várias histórias reais.
Dentro de um Estado policial, um grupo de estudantes liderados por um exímio dançarino (Robert Sean Leonard) desafia proibição de escutar jazz e blues norte-americanos imposta pelo governo – tudo o que era americano e inglês havia sido proibido por Adolf Hitler e seu cão de guarda, o ministro da Propaganda, Joseph Goebbels.
Leonard e seus amigos (também no elenco estavam os então jovens Christian Bale, que interpretou Batman, e Barbara Hershey) desapareciam todas as noites para frequentar os clubes clandestinos de jazz de Berlim para conhecer as novidades musicais e literárias do exterior.
O desafio custou-lhes caro, mas fizeram questão de deioxar claro que a liberdade era o bem mais precioso que um ser humano poderia ter.
As recentes cruzadas contra obras literárias no Rio de Janeiro e apostilas didáticas em São Paulo em muito lembram a luta de Peter Müller, o personagem de Robert Sean Leonard, para ter o direito de ouvir o que quiser e de dançar o que quisesse e quando quisesse.
A vergonhosa ação do prefeito Marcelo Crivella (PRB) de tentar censurar e proibir um gibi que mostrava um beijo gay na série Vingadores mostra que as forças obscurantistas e fascistas – sob inspiração do pior tipo de seita evangélica que existe – perderam o pudor e estão atacando abertamente.
A vergonha foi gigantesca, com fiscais estúpidos da prefeitura tentando caçar exemplares do livro na Bienal do Rio. Saíram de mãos abanando, já que o livro esgotou.
Mais tarde, neste domingo (8), ainda que de forma tardia, o STF (Supremo Tribunal Federal) proibiu qualquer forma de censura, e de forma contundente, humilhando o prefeito ridículo e o presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Claudio Tavares, outro ser que ainda vive na Idade Média.
Os ataques de Crivella, da Justiça fluminense e do governador João (PSDB), de São Paulo – que teve a coragem de mandar recolher uma apostila da rede pública que tratava de homossexualismo e temas LGBTs – são uma clara tentativa de esticar a corda para ver até onde conseguem espalhar seu ódio e sua discriminação.
A política conservadora que empesteia o Brasil vai continuar testando os limites da liberdade de expressão e de opinião para impor sua visão tacanha e nojenta de mundo, sobretudo na questão do comportamento privado das pessoas.
Desde o primeiro dia do governo nefasto do presidente Jair Bolsonaro (PSL) contaminou a sociedade brasileira com seu ódio ao conhecimento, à educação, às artes e às liberdades individuais.
Essa onda asquerosa de conservadorismo se espalhou por muitos Estados e capitais brasileiras, a ponto de vereadores sem noção de Porto Alegre proibirem uma exposição de charges e cartuns na Câmara Municipal. O motivo: desenhos supostamente "desrespeitosos" ao presidente Bolsonaro.
Diante da falta de perspectivas do governo federal em todas áreas, com a incompetência administrativa total ficando evidente, a busca por factoides e por incrementar uma agenda conportamental para mascarar os problemas tornou-se uma prioridade para o mundo conservador-evangélico-medieval.
Para essa gente burra e nefasta, não basta apenas vomitar ódio e lixo por aí. Ignorando preceitos constitucionais e leis diversas, massacram o bom senso e investem contra o conhecimento e o pensamento crítico.
A reação contundente diante da censura na Bienal do Livro do Rio foi, até agora, a principal reação em nove meses de atentados contra a liberdade de expressão. Parece que finalmente parte da socoiedade despertou para os riscos que pairam sobre a nossa civilização.
Entretanto, não é suficiente. Muita, mas muita gente mesmo neste país infeliz apoia a censura e as ações de ódio e discriminção do Estado agora tomado pelas hordas conservadoras. As manifestações de apoio à execrável tentativa de censura na Bienal carioca foram muito acima do tolerável, para profunda vergonha do país.
O teste dos limites das instituições na defesa da liberdade de expressão mostrou que a oposição será dura e contundente, provocando um recuo estratégico. Mas não nos enganemos: os próximos ataques serão iminentes.
Os autoritários têm ojeriza à inteligência e ao conhecimento e certamente sonham com a "opoertunidade" de invadir "clubes clandestinos de arte", de constranger as mentes livres por ousarem apreciar música e literatura proscritos e fora das listas que têm as bênçãos do governo ou do poder.
A guerra cultural declarada pelo bolsonarismo contra a civilização, que antes era apenas uma ameaça e depois travada em alguns subterrâneos da sociedade, agora é explicita.
Será uma guerra de guerrilha, onde toda a atenção para identificar os ataques será necessária. Quando a a nossa guarda estiver baixa, virão outros atentados, inclusive com apoio judicial, como verificamos na lamentável decisão tomada pelo desembargador do TJ-RJ Claudio Tavares.
Boa parte das pessoas que resistem é formada por gente otimista, que teme os retrocessos institucionais e civilizatórios, mas não acredita que possamos voltar a viver numa ditadura.
Neste caso, o otimismo se transforma em ingenuidade pura. Artistas de todos os tipos tiveram de viver na clandestinidade, de uma maneira ou de outra, durante a ditadura militar que durou de 1964 a 1985.
A realidade naquele período para quem resistia ou simplesmente fazia algum tipo de crítica ou oposição, principalmente no meio artístico, não era muito diferente da que os estudantes modernos viviam na ditadura nazista antes e durante a Segunda Guerra Mundial – opressão e repressão que também ocorreram nas cidades dos países do bloco sovético europeu após o conflito.
Será que teremos de criar "clubes clandestinos de rock" para ouvir nossa música predileta ou ver as bandas de que gostamos, como muitos tiveram de fazer em Budapest (Hungria), Praga (antiga Tchecoslováquia) ou Varsóvia (Polônia) na virada dos anos 70 para os 80?
Peter Müller, o líder dos estudantes amantes da arte no filme "Os Últimos Rebeldes", não dançou por último, mas inspirou seu irmão e mais um um monte de crianças sufocadas pelo nazismo que a luta pela liberdade é constante e ininterrupta. O fascismo e o autoritarismo não podem vencer nunca. E não vencerão.
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