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Jeff Beck, 75 anos: ousadia, genialidade e excelência

Combate Rock

27/06/2019 07h00

Marcelo Moreira

Ele substituiu Eric Clapton e ainda teve de conviver com o amigo Jimmy Page como par de guitarras por um tempo. Genioso e temperamental, não poderia aguentar tal coisa por muito tempo. Então decidiu cometer um dos melhores e mais emblemáticos álbuns de estreia da história do rock.

O álbum "Truth" nasceu da raiva, da frustração e da ambição de um jovem guitarrista que tinha certeza de que era "o cara". Seu ego e seu imenso talento não cabiam dentro de uma banda – desde que, no entanto, a banda fosse dele e levasse o seu nome.

E então Jeff Beck, que completou 75 anos newste mês de junho, o melhor guitarrista da história do rock (Jimi Hendrix não conta porque era um extraterrestre), carimbou o passaporte para entrar no panteão dos deuses do instrumento.

Autodidata e espertíssimo, Beck já era considerado gênio quando tocava na banda Tridents, no início dos anos 60, antes mesmo da explosão dos Beatles e dos Rolling Stones. Fazia música pop, mas adorava mesmo o blues.

Era novo e uma promessa , mas muito bem relacionado entre os músicos jovens ingleses, tanto que o amigo Jimmy Page, que ganhava uma boa grana como músico de estúdio em Londres, não pensou duas vezes: recusou o convite para substituir outro amigo, Eric Clapton, nos Yardbirds, no meio de 1965, mas imediamente indicou Beck para o posto.

Já era sabido que o moço era temperamental, mas o custo-benefício valeu casa segundo das brigas, birras e altercações: a guitarra de Beck moldou o som e as composições do quinteto.

Mas os Yardbirds eram um barril de pólvora. Todo mundo gostava de brigar e discutir, e a coisa ficou insustentável para o baixista Paul Samwell-Smith, que saiu e virou produtor musical. Foi a deixa para Jimmy Page entrar como baixista, no começo de 1966, cansado da vida de músico de estúdio.

FOTO: REPRODUÇÃO/YOUTUBE

Mais velho e mais experiente do que o resto da turma, logo Page tomou conta do pedaço e começou a arrumar a casa.

Contrariado, Beck (que era meses mais novo que o então amigo) manteve a amizade acima de tudo, mas não gostou nada quando Page e o limitado guitarrista base Chris Dreja decidiram trocar de instrumento.

Foi o estopim para que Beck decidisse por mandar no próprio nariz e não ficar à mercê de assembleísmos e das bebedeiras que descambavam para a falta de profissionalismo.

A dupla de gênios de guitarra tocou pouco tempo junto, mas fizeram duelos memoráveis e construíram nova reputação para os Yardbirds. No final de 1966, Jeff Beck já tinha o seu Jeff Beck Group na manga, criado em segredo, e abandonou o barco.

Liberdade e tensão

A molecada que ele recrutou era da pesada. Rod Stewart era um cantor londrino-escocês bonachão e com voz de serra elétrica. Tentara a carreira solo, mas empacou aos 21 anos de idade por conta da falta de repercussão.

Ron Wood era um garoto cigano narigudo de 19 anos que tocava guitarra e baixo, mas que na verdade amava mesmo era desenhar, pintar e fotografar. Por conta insistência do irmão, Art, o líder dos Artwoods, acabou aceitando a vaga de baixista para a banda de Beck. Na bateria estava o correto Mick Waller, preciso, mas pouco ambicioso.

A banda era um supergrupo antes de existirem os supergrupos – foi criada ao mesmo tempo do Cream, de Eric Clapton, Ginger Baker e Jack Bruce.

Beck queria sair rasgando, causar impacto, e conseguiu, embora tenha sido surpreendido por Jimi Hendrix, que acabara de chegar a Londres.

Foto rara da formação dos Yardbirds com os dois magos da guitarra: em cima, Jimmy Page (esq,) e Jeff Beck; embaixo, Keith Relf (esq., vocalista), Jim McCarthy (bateria) e Chris Dreja (baixo) (FOTO: DIVULGAÇÃO)

A estreia solo foi um arraso com "Truth", que abre "Shapes of Things" abre "Truth" com um soco na cara – um blues transfigurado de distorção e solos corrosivos de guitarra, em nada lembrando a versão original, dos Yardbirds.

"Let Me Love You" e "Morning Dew" foram duas grandes descobertas na garimpagem de clássicos do cancioneiro norte-americano, onde a voz de Stewart imprimiu um uma mescla de tom bluesy com soul music, especialmente na segunda canção.

"You Shook Me", de Willie Dixon, definiu para muita gente o que viria a ser o rock pesado, tanto que foi gravada também no álbum de estreia do Led Zeppelin, em 1969. O blues pesado e intenso ganhou uma sobrecarga de energia com um timbre gordo de guitarra e baixo, com palhetadas marcantes de Beck.

Encerrando o lado A do LP, outro clássico, "Ol' Man River", que se tornou um hino gospel de rara beleza.

Após recuperar o fôlego, o ouvinte embarca em uma curta viagem renascentista com o violão delicado de "Greensleeves", tema tradiciona britânico, para então ser acertado em cheio por outro blues pesado de Willie Dixon, a versão magistral de "I Ain't Superstitious".

Preparando o "gran finale", surge a instrumental com cara de jam "Beck's Bolero", um tema composto por Jimmy Page. Era uma brincadeira de estúdio que ficou séria e se tornou um clássico cult do rock.

A banda aqui é outra: dos originais, só Jeff Beck, acompanhado por Page na outra guitarra, John Paul Jones (futuro Led Zeppelin) no baixo e teclados, John Entwistle no baixo e Keith Moon na bateria – cozinha de The Who – e o pianista Nicky Hopkins.

Reza a lenda que, nos estúdios, quase surgiu um novo supergrupo: Beck, Page Entwistle e Moon chegaram a cogitar a criação de um projeto.

Entretanto, Moon descartou logo depois a união: "A chance de dar certo era tão 'grande' quando a possibilidade de um zepelim de chumbo voar", teria dito aos amigos. Page guardou a frase e usou o termo mais importante para dar nome a sua banda um ano depois…

O álbum termina com uma gravação ao vivo da poderosa "Blues Deluxe", de Jeffrey Rod, com mais de sete minutos de um bluesaço de primeira categoria, onde todos os músicos brilham, com o auxílio esplendoroso do pianista Nicky Hopkins.

Bomba-relógio

Obcecado por timbres inusitados, perfeccionista chato e workaholic, Beck começou a perturbar demais os companheiros, especialmente nas turnês pela Europa e pelos Estados Unidos.

As tensões cresceram muito nos últimos seis meses da formação, e chegou ao auge quando, nos bastidores de uma apresentação em San Francisco, escutou uma conversa no camarim ao lado.

Alguém chegou para Rod Stewart e comentou em tom de elogio: "Excelente a sua banda, hein, Jeff? Você canta muito bem, e seu guitarrista também é muito bom."

Possesso com o que considerou uma desfaçatez, teria decidido ali mesmo reformular o grupo quando voltasse a Londres. Era o finalzinho de 1968.

Jeff Beck Group em 1968: Rod Stewart, Ronnie Wood, Mick Waller e Jeff Beck
(FOTO: Michael Ochs Archives/Getty Images)

Pouco tempo depois da volta, acabou surpreendido quando foi informado de que Wood e Stewart tinham se juntado a Ronnie Lane (baixo), Ian McLagan (teclados) e Kenney Jones (bateria) em uma nova banda.

Os três integrantes eram dos Small Faces, que estava acabando naquele começo de 1969 com a saída do guitarrista e vocalista Steve Marriott. Com Wood e Stewart, o quinteto passou a se chamar Faces.

Quanto a Beck, meio desorientado e vendo a concorrência subir cada vez mais alto, ainda mais com a chegada do Led Zeppelin, decidiu mudar seus horizontes musicais. Optou pelo ecletismo e pela fuga do mundo pop.

A segunda encarnação do Jeff Beck Group caiu de cabeça no funk e na soul music, com toques de jazz, nos primeiros anos da década de 1970, até abraçar novamente o hard rock em 1973 com o trio Beck, Bogert & Appice, ao lado dos norte-americanos Tim Bogert (baixo e vocais) e Carmine Appice (bateria).

Músicos rasteiros

O rock pesado durou menos de dois anos. Sem avisar os colegas, decidiu mudar de rumo e encarar uma carreira solo. Jeff Beck Group agora dava lugar à carreira de Jeff Beck, mestre da guitarra jazz fusion, mirando gente como Wes Montgomery, Joe Pass e o compatriota John McLauglin (ex-Mahavishnu Orchestra e parceiro de Miles Davis e Calos Santana).

Obcecado pela perfeição e pelo timbre cristalino, abraçou o jazz em uma sequência genial de álbuns, com destaque para "Blow by Blow" (1975) e "Wired" (1976).

Foi então que, irritado com a pergunta de um jornalista sobre as eternas comparações com os amigos Claptonm e Page, soltou a pérola: "O rock já era, eu evoluí e me sinto um músico completo e competente fazendo o que faço hoje. Qualquer modalidade fora do jazz transforma os músicos em músicos rasteiros."

A partir de 1977 engatou uma parceria com o tecladista e compositor de trilhas sonoras Jan Hammer e manteve o bom nível de seu jazz rock até 1980, quando resolveu partir para a reclusão. Milionário, investiu em suas duas paixões: carros clássicos e jardinagem.

Nos anos 80, fam apenas dois álbuns próprios – "Flash" (1984) e "Guitar Shop" (1989), mas colaborou em várias trilhas sonoras de filmes e também nos dois álbuns solo de Mick Jagger naquela década.

Hiatos longos

Na década seguinte, Beck se manteve recluso, saindo raramente de casa para tocar. Os amigos do Big Town Playboys foram agraciados com a presença dele em estúdio na gravação de um álbum completo em homenagem ao cantor Gene Vincente (morto em 1971), que tinha como guitarrista um dos heróis de Beck, Cliff Gallup.

Quando muitos apostavam na aposentadoria do músico, ele retorna aos palcos e aos discos com uma trilogia experimental que continha muito blues e arranjos eletrônicos, o que espantou os fãs.

"Who Else?" (1998), "You Had It Coming" (2000) e "Jeff" (2003) continham boas ideias, mas desagradaram a um grupo de antigos fãs ainda presos a uma ideia de rock sessentista em que a genialidade era medida por solos inspirados e riffs matadores.

Desgostoso, só voltaria a gravar algo novo dem 2010, com "Emotion and Commtion", um disco excelente onde ele combinou suas influências de blues e jazz com canções de cunho erudito e mais sofisticadas do cancioneiro norte-americano.

Jeff Beck e as meninas de sua banda, em, 2016 ao menos no estúdio: Rosie Bones (esq.) e Carmen Vandenberg (FOTO: DIVULGAÇÃO)

Para surpreender a todos, "Loud Hailer", de 2016, é outra pancada no ideário roqueiro daqueles ainda presos ao classic rock. Flertando com o hip hop e com ritmos eletrônicos mais modernos, concebeu uma obra que trouxe frescor à carreira longeva e ao próprio rock do século XXI.

Irascível, genioso e arrogante, Jeff Beck foi um músico que alargou as fronteiras da música popular. Inquieto e insinuante, estabeleceu padrões elevados dentro do mercado musical e raramente fez concessões.

O rótulo de "gênio" concedido a ele é uma unanimidaden entre músicos, produtores e fãs, um dos poucos artistas a ser nomeados três vezes no Rock and Roll Hall of Fame – com os Yardbirds, com o Jeff Beck Group e como artista solo.

Sobre os Autores

Marcelo Moreira, jornalista, com mais de 25 anos de profissão, acredita que a salvação do Rock está no Metal Melódico e no Rock Progressivo. Maurício Gaia, jornalista e especialista em mídias digitais, crê que o rock morreu na década de 60 e hoje é um cadáver insepulto e fétido. Gosta de baião-de-dois.

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O Combate Rock é um espaço destinado a pancadarias diversas, com muita informação, opinião e prestação de serviços na área musical, sempre privilegiando um bom confronto, como o nome sugere. Comandado por Marcelo Moreira e Mauricio Gaia, os assuntos preferencialmente vão girar em torno do lema “vamos falar das bandas que nós gostamos e detonar as bandas que vocês gostam..” Sejam bem-vindos ao nosso ringue musical.
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