A intolerância avança e começa a contaminar o rock
Marcelo Moreira
As pequenas vilanias e patifarias do nosso dia a dia em tempos bolsonaros estão inflando e crescendo. O que era pequeno já não é mais pequeno. E o que era o sintoma de doença começa a se transformar em uma epidemia desastrosa de proporções incalculáveis.
Enquanto o governo federal faz acenos ao que de pior existe no empresariado da humanidade ao afrouxar leis de combate ao trabalho escravo e mostra a sua verdadeira face ao demantelar os grupos oficiais de combate e investigação da tortura (em todos os níveis e a qualquer tempo), a sociedade parece encarnar os piores desejos de ódio e vinagnaça estimulados por esse mesmo governo e apoiadores.
O Palácio do Planalto cada vez mais e mais estimula o ódio como manobra diversionista para mascarar a falta de competência e objetivos. O presidente vomita bobagens atrás de bobagens e agora se vê acuado diante da maré negativa e da perda de apoio. Fala em armar de formas massiva e acelerada a população "para evitar tentativas de golpe de Estado".
Diante de tal quadro, a tropa de choque bolsonarista – virtual e real – deixa de lado qualquer tipo de pudor e ataca impiedosamente – e sem qualquer razão – o menor indício de vida inteligente que não compactue com as barbaridades que perpetram.
E assim o jornalista Glenn Greenwald, do site The Intercept, e o marido, o deputado federal David Miranda (PSOL-RJ) são ameaçados e intimidados por conta das denúncias fortes que atingem o inacreditável ministro da Justiça, Sergio Moro, por conta das irregularidades cometidas enquanto juiz da Operação Lava Jato.
Homossexuais, Greenwald e Miranda correm risco de morte e de agressões, ainda mais depois que o STF (Supremo Tribunal de Justiça) decidiu, por 8 votos a 3, que homofobia é crime – para a ira dos piores pastores das piores seitas evangélicas discriminatórias e estimuladoras do ódio.
Diante de tal cenário, não surpreende que uma cantora de rock trans brasileira esteja sofrendo discriminação e boicote no mercado brasileiro.
Föxx Salema é uma mulher transexual nascida em Bragança Paulista (SP) e radicada em Belo Horizonte. Acaba de lançar o álbum "Rebel Hearts", onde faz o rock com pitadas de hard rock competente e com faixas interessantes, embora nem um pouco original.
É um trabalho consistente, acima da média dos artistas de rock que estreiam em álbuns – embora Salema seja veterana do cenário roqueiro do interior de São Paulo.
No entanto, infelizmente, ganhou notoriedade nos últimos dias por conta de denúncias de boicote e discriminação de gênero.
Ao questionar publicamente vários veículos de comunicação, a maioria underground, os motivos de ter o material que enviou para resenhas e análises rejeitado ou ignorado, ela recebeu xingamentos variados nas redes sociais e em chats de comentários.
Os ataques visaram sua condição de transexual e também suas posições políticas manifestadas nas redes sociais, onde apoia causas de esquerda e ligadas aos direitos humanos – tudo o que o mundo bolsonaro e conservador detesta.
Salema copiou e printou vários dos comentários e das respostas agressivas que recebeu de várias pessoas em vários chats de comentários e postou em suas redes sociais para demonstrar ser vítima de ódio por ser transexual e militante de esquerda.
Quanto à questão do suposto boicote que a artista afirma estar sofrendo, não cabe maiores discussões e debates, já que é algo que é difícil provar. Ninguém é obrigado a ouvir e fazer o que quer que seja, sendo bom ou ruim o material.
Boicote ou ignorância do material é direito inalienável de qualquer um, dentro da liberdade de expressão e de comportamento.
O Combate Rock, por exemplo, raramente publica análises e informações sobre material que consideramos muito ruim. É uma forma de preservar o artista e de não desperdiçar tempo dos jornalistas e leitores. Não é o caso, no entanto, quando se trata de artistas famosos, veteranos ou as duas coisas.
Entretanto, a forma como algumas pessoas inquiridas responderam foi grosseira e agressiva (ok, nem todo mundo tem educação), mas vários limites foram ultrapassados, de acordo com os depoimentos em vídeo de Salema e com os prints das respostas.
Mais do que isso, muita gente ultrapassou os limites da civilidade. Neste caso, o silêncio seria uma resposta. Que os inquiridos ignorassem os questionamentos, já que ninguém é obrigado a ouvir nada e analisar nada.
Quem se dignou a responder o fez com falta de profissionalismo, de educação e civilidade, alegando que discordavam da posição política (?????) da cantora e, uns poucos, eventualmente, fizeram alusão negativa ao fato de ela ser trans.
Mas o que estava em discussão não era a música contida no CD "Rebel Hearts"? O que o voto em Lula ou em Bolsonaro tem a ver com isso? E o que o fato de ser trans, hétero ou homossexual tem a ver com cantar bem ou não?
Era mais decente e menos odioso ter dito que o CD é muito ruim e que ela é uma péssima cantora. Resolveria a maior parte dos problemas. Usar subterfúgios espúrios e ofensivos apenas com o intuito de descontruir e depredar reputação é asqueroso.
Assim como Salema e o casal Greenwald-Miranda, muitas e muitas pessoas passaram a observar um recrudescimento dos ataques contra homossexuais e pessoas ligadas ao mundo LGBTQ desde que Jair Bolsonaro foi eleito presidente, no ano passado.
O número de casos de violência e assassinatos contra as pessoas dessas orientações subiu neste primeiro semestre, em relação ao ano passado, segundo as principais lideranças LGBTQs.
Os dados ainda estão sendo tabulados por essas entidades, mas a sensação é de que a violência aumentou, e que a criminalização da homofobia, determinada pelo STF, pouco impactará, ao menos no curto prazo, na diminuição da violência contra essa população.
Julio Pinheiro Cardia, ex-coordenador da Diretoria de Promoção dos Direitos LGBT do Ministério dos Direitos Humanos, compilou informações em um estudo aterrorizante: 8.027 pessoas LGBTs foram assassinadas no Brasil entre 1963 e 2018 em razão de orientação sexual ou identidade de gênero.
No documento, Cardia somou as denúncias de assassinato registradas entre 2011 e 2018 pelo Disque 100 (um canal criado para receber informações sobre violações aos direitos humanos), pelo Transgender Europe e pelo GGB (Grupo Gay da Bahia), totalizando 4.422 mortos no período.
Isso equivale a 552 mortes por ano, ou uma vítima de homofobia a cada 16 horas no país, segundo reportagem do portal UOL.
No caso de Föxx Salema, há uma possibilidade e uma certeza. A possibilidade é de que a cantora possa estar se aproveitando de certa exposição por conta da denúncia, e de que a intenção, desde o começo, foi essa. Quanto a isso, não há como precisar se é verdadeiro – suspeitamos de que não é o caso.
A certeza, no entanto, é de que ela foi vítima de discriminação política e sofreu ataques por conta de sua condição de transexual, ou ao menos foi insultada com várias insinuações pejorativas.
O Combate Rock já havia alertado que o mundo do conhecimento, das artes e da cultura sofreria com a indo conta de tolerância do mundo bolsonaro e da onda conservadora furiosa que havia tomado conta de nossa sociedade.
E isso se reflete, també, nos inúmeros casos de violência policial que testemunhamos neste triste ano de 2019. E nada parece ser capaz de mudar esse cenário pavoroso. O caso de Salema, lamentavelmente, parece brando em relação ao que está por vir.
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