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Dead Kennedys e a desintegração do ambiente roqueiro nacional

Combate Rock

25/04/2019 06h20

Marcelo Moreira

Dead Kennedys no começo dos anos 80 (FOTO: DIVULGAÇÃO)

A anarquia foi cooptada pelo mundo corporativo. É assim que se sentem os fãs mais radicais dos Dead Kennedys, o nome maior do punk/hardcore da Califórnia e que vai tocar em breve no Brasil.

A polêmica sobre o cartaz da turnê em terras nacionais gerou um enorme mal-estar depois que a banda renegou a arte que faz feroz crítica à política nacional e ao governo Jair Bolsonaro – e tudo que cerca a onda conservadora que tomou conta do país.

A banda, de modo muito infeliz, recuou e disse que não tinha autorizado a divulgação do cartaz. Entre outras coisas, informou que não tinha informações suficientes para fazer comentários sobre a política brasileira de 2019.

No entanto, Cristiano Suarez, o artista que fez a arte, provou nas redes sociais que a banda não só sabia do que se tratava como tinha aprovado o trabalho e postado em suas redes sociais.

O recuo pegou muito, mas muito mal entre fãs brasileiros e sul-americanos por conta do histórico de protesto político e crítica feroz que a banda sempre manteve, com ou sem Jello Biafra, o ex-vocalista igualmente feroz e mordaz que saiu da banda em 1986.

Ativista político e militante de esquerda e pelos direitos humanos, Biafra cursou história na Califórnia e chegou a fazer pós-graduação em história do Paraguai. Fala bem o espanhol e arranha o português e está sempre por dentro do que rola no Brasil, na Argentina, no Chile e no Paraguai.

Chegou a se candidatar a prefeito de Los Angeles e governador da Califórnia como candidato de protesto, com plataformas políticas recheadas de humor – recuperou, inclusive, uma proposta de Frank Zappa, que um dia foi candidato, de obrigar os policiais californianos a trabalharem usando narizes de palhaço.

As divergências artísticas separaram Biafra dos antigos companheiros, mas as canções icônicas que fizeram dos Dead kennedys uma banda temida pela virulência da mensagem política e de protesto continuaram no repertório, fazendo crer que os que permaneceram na banda e eventualmente entraram depois compactuam com a "mensagem" e as diretrizes do grupo.

Coincidentemente (ou não), a banda de abertura dos shows são os Garotos Podres, agora com a volta do vocalista José "Mao" Rodrigues, nome fundamental do punk brasileiro, que saiu em 2011 do grupo por divergências "políticas" com os demais membros.

Mao é professor universitário, de história, e é um militante histórico de esquerda dentro da cultura nacional e do meio político paulista. É o grande responsável pelas letras mordazes e ferinas das canções do grupo.

Como foi possível ele conviver com integrantes da banda que defendiam causas ligadas à direita, como o apoio a governos do PSDB e a atuação de policiais militares, que frequentemente são apontados como os mais violentos do Brasil?

Os defensores da cautela demonstrada pelos Dead Kennedys mesmo após o endosso da arte do cartaz esgrimem argumentos que fazem algum sentido.

São pessoas ligadas ao movimento punk, mas que optaram pela sensatez e por uma certa coerência para defender que a banda certamente desconhece o atual momento sociopolítico conturbado do Brasil e que, possivelmente alertado pelos promotores do shows, optaram por aliviar o ambiente e esfriar os ânimos.

Manu "Joker" Henriques, cantor da banda mineira Uganga, escreveu em suas redes sociais uma crítica contundente a respeito daqueles que estão chamado os Kennedys de "banda fascista", que merece ter CDs e pôsteres queimados.

"Quem tem esse tipo de atitude de boicote por uma coisa tão insignificante desconhece a dificuldade que é sair pelo mundo, tocando em vários países governados por ditatores e, para manter a postura política, sair confrontando ditaduras e sistemas políticos antidemocráticos só porque os fãs querem", escreveu o músico.

A postura faz sentido em termos genéricos, mas perde força ao considerarmos que o Brasil é um país democrático e com uma atuação forte de artistas e agentes culturais em defesa da liberdade de expressão e dos direitos humanos, por mais que as forças conservadoras que apoiem Bolsonaro façam constantes ataques a adversários, críticos e opositores.

E é necessário entrar n a questão dos contratantes. Quem se aventura a promover um show de uma banda que é um símbolo da música de protesto no mínimo tem obrigação de saber quem são os artistas.

Em seguida, é sensato informar aos empresários e responsáveis pela administração de um grupo que toca "California Uber Alles" e "Holiday in Cambodja" a quantas anda a política no local onde vão tocar.

Por mais maluco que possa ser, é necessário informar os músicos deste tipo de banda que a plateia terá punks ou fãs de direita, que certamente poderão vaiar qualquer alusão a temas mais sensíveis que os desagradem, mesmo que esse tipo de ser desconheça completamente a história dos Dead Kennedys e seja totalmente analfabeta em inglês.

É um paradoxo que será difícil de explicar ao guitarrista East Bay Ray e para muitos punks mundo afora. Como é possível que gente que adora ver policial bater em manifestante, apoia a liberação do porte e da posse de armas e adora depredar a liberdade de expressão possa ir a um show de uma banda punk visceral e libertária e violentamente antifascista.

Por outro lado, a polêmica do cartaz foi importante para mexer com os brios de uma moçada que andava cabisbaixa e acomodada em relação aos tempos complicados em que vivemos. Forçou muita gente a se posicionar, por mais que muita das opiniões que estamos lendo sejam preocupantes.

Se gente inteligente e articulada como Henriques, do Uganga, consegue ponderar e pedir moderação na análise do comportamento dos Dead Kennedys, muita gente supostamente sensata preferiu a saída mais fácil de condenar a politização do evento e da própria polêmica, amenizando o seu impacto e desqualificando aqueles que se decepcionaram com a postura "amedrontada" (ou extremamente cautelosa) do quarteto californiano.

Estes, por sua vez, não economizaram nos adjetivos para explicitar sua desilusão e não se acanharam em desqualificar quem apoiou a banda ou não viu problemas no recuo da banda – e que até apoiou a postura dos integrantes.

Como havíamos dito em texto nesta semana, ninguém ganhou com a balbúrdia, e o aquele que mais sofre, no momento, é o artista Cristiano Suarez, que desenhou o cartaz e passou a ser alvo de ataques e xingamentos de direitistas e extremo-direitistas, que não se envergonham mais em explicitar todo o seu mau-caratismo e estupidez com esse comportamento.

Há uma série de lições que podem ser tiradas do episódios, mas será inútil exigir que isso aconteça e que haja reflexão no sentido de preservação da liberdade de expressão sem que estejamos à mercê de ataques coléricos e burros das  turbas enfurecidas das redes sociais e das redes pessoais, do mundo real.

O Combate Rock só tem a lamentar a desintegração de um ambiente saudável e outrora pacífico que dominava a sociedade e o mundo do rock.

Consideramos que ninguém ganhou e todos perderam, principalmente a banda, que manchou sua história de ativismo político e de posicionamento a favor das liberdades individuais e civis, mas sempre do ponto de vista do cidadão.

Seja por falta de informação, de forma involuntária, por excesso de cautela ou por insistentes pedidos dos promotores locais, os Dead Kennedys pecaram pela omissão, em que esse pecado é quase fatal para uma banda que tem a importância que tem no cenário punk internacional.

Vai sobrar para os Garotos Podres, a banda brasileira de abertura na turnê nacional, consertar essa enorme lambança.

Sobre os Autores

Marcelo Moreira, jornalista, com mais de 25 anos de profissão, acredita que a salvação do Rock está no Metal Melódico e no Rock Progressivo. Maurício Gaia, jornalista e especialista em mídias digitais, crê que o rock morreu na década de 60 e hoje é um cadáver insepulto e fétido. Gosta de baião-de-dois.

Sobre o Blog

O Combate Rock é um espaço destinado a pancadarias diversas, com muita informação, opinião e prestação de serviços na área musical, sempre privilegiando um bom confronto, como o nome sugere. Comandado por Marcelo Moreira e Mauricio Gaia, os assuntos preferencialmente vão girar em torno do lema “vamos falar das bandas que nós gostamos e detonar as bandas que vocês gostam..” Sejam bem-vindos ao nosso ringue musical.
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