Topo

Pequenas patifarias diárias escancaram o beco sem saída do Brasil

Combate Rock

26/03/2019 07h00

Marcelo Moreira

Uma sociedade doente costuma manifestar o ódio irrestrito e ilimitado aos poucos, como diria um poeta anônimo nos anos 30 na opulenta e turbulenta Berlim, a capital da então Alemanha nazista. Para muitos historiadores, é um dos passos inevitáveis do surgimento e do estabelecimento do fascismo.

Faz parte do processo as pequenas vilanias e patifarias do dia a dia de uma sociedade em vias de assumir e autorizar o autoritarismo, com toda a sua receita de ódio, envolvendo preconceito, fanatismo, nacionalismo burro, patriotismo igualmente desprovido de inteligência e caráter, religiosidade falsa e mórbida, além do profundo ódio da diversidade e da liberdade como um todo – expressão, opinião, artística e de imprensa.

No último final de semana pudemos verificar as pequenas patifarias do dia a dia que assustam e que revelam o caráter de uma sociedade putrefata. São as patifarias dos chamados "cidadãos de bem", aqueles que odeiam pobres e que não suportam negros em pé de igualdade.

Quais foram as pequenas vilanias e patifarias recentes?

Cena 1 – Alunos de uma escola da periferia de Guaratinguetá (SP), em um bairro carente, conseguem a proeza de fazer uma excursão para São Paulo. Vão visitar, na capital, onde quase todos nunca estiveram, uma exposição do mundo Disney no chique shopping JK Iguatemi.

Chegam bem antes da abertura da exposição e os professores pedem informações para uma funcionária da ONG que organiza o evento: onde podem comer e fazer um lanche?

A resposta: "Acho melhor vocês irem para uma lanchonete lá na avenida ou no Parque do Povo, do outro lado de outra avenida. Aqui é um lugar elitista". Só faltou dizer que não eram bem-vindos com todas as letras.

Cena 2 – Incêndio grande em uma favela da zona leste de São Paulo, na beira da avenida Radial Leste, importante ligação da região com o centro da cidade. Uma pessoa morreu. Centenas ficaram  desabrigadas.

Enquanto os bombeiros trabalhavam para acabar com o fogo, ao menos 30 motoristas, ao passarem pelo local, buzinaram muito em sinal de satisfação, "comemorando" o incêndio e chamando as vítimas de "bandidos" e "vagabundos"…

Cena 3 – A ex-presidente Dilma Rousseff foi xingada e ameaçada em pleno saguão do aeroporto de Madri, capital da Espanha, Voltava ao Brasil após cumprir compromissos assumidos com entidades políticas europeias. Ela deu azar de encontrar um grupo dez ou vinte brasileiros nojentos e asquerosos que pretendia embarcar para o Brasil. Era uma "gente de bem", endinheirada e supostamente escolarizada, mas sem o menor resquício de educação e civilidade.

Duas intelectuais brasileiras foram em socorro da ex-presidente e tiveram de defendê-la de quase ser agredida. Uma dessas mulheres é Djamila Ribeiro, escritora e voz importante do movimento negro do Brasil. Foi igualmente xingada e humilhada, em certos momentos com insultos de cunho racista.

FOTO: REPRODUÇÃO INTERNET

Cena 4 – No final de outubro, segundo o site da revista Examepouco antes de 17 campi universitários serem invadidos pela polícia por manterem cartazes com mensagens antifascistas, professores da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) receberam uma carta anônima listando o nome de 15 docentes e estudantes de ciências humanas ameaçados de serem "banidos" da instituição depois da posse de Jair Bolsonaro.

A carta detalha que todas as pessoas nomeadas desenvolvem pesquisas e trabalham com o público LGBT, ou seriam "lésbicas, gays, prostitutas e partidários de esquerda".

A violência em ambiente universitário já tem alertado a comunidade internacional. Há oito meses, a organização Scholars at Risk, ou Acadêmicos em Risco, em português, tem sido procurada por professores brasileiros que se sentem inseguros no país.

Cena 5 – Festival de metal extremo em São Bernardo do Campo, no ABC Paulista, numa tarde ensolarada de domingo. Apesar do público aquém do esperado, havia uma pequena multidão ruidosa e paramentada para assistir a quatro bandas que faziam um som "dos infernos", como bradavam dois adolescentes com camisetas pretas de bandas "demoníacas".

Pela primeira vez na história dos festivais de música e rock no Parque da Juventude, no centro da cidade, houve revista realizada por guardas civis municipais, como se fosse um jogo de futebol entre times grandes de São Paulo.

Na maioria dos casos, a revista foi feita de forma educada e respeitosa, exceto quando a molecada aparecia com camisas explícitas com alusão ao satanismo ou a coletivos políticos de esquerda.

Quatro garotos e uma menina de cabelo roxo e maquiagem pesada foram separados e impedidos de entrar por alguns minutos. Foram ironizados e zoados por dois dos guardas, que não se conformavam com as estampas diabólicas das camisetas e dos adereços nas jaquetas e bolsas com símbolos antifascistas e punks.

Outros dois meninos, trajando camisetas com mensagens políticas alusivas ao PSOL e ao PSTU, foram deliberadamente revistados de forma mais minuciosa do que outras pessoas.

Como o parque estava aberto ao público em geral, pessoas que faziam caminhada na pista de cooper xingaram os meninos que ousaram se vestir de forma a protestar contra o que quer que seja. "Essa gente maltrapilha e nojenta vai ser escorraçada, molecada sem educação", gritou um um ser estranho vestindo tênis caro e camisa de marca estrangeira, todo suado e ofegante.

"Esse mundo precisa ser moralizado. Jamais deveria ser permitido que essa gentinha escute esse barulho e faça apologia do demônio", bradou uma mulher vestida com roupa esportiva cara que pegava sua bicicleta muito mais cara. Os guardas civis ouviram essas e outras baixarias e riram bastante. Pareciam se divertir com essas patifarias mesquinhas vociferadas por "gente de bem".

Não que os roqueiros – em especial os metaleiros – não estivessem acostumados com isso desde sempre, há pelo menos 40 anos. A diferença, agora, é que os preconceituosos e pobres de espírito (para ser elegante) agora se sentem confiantes e respaldados para intimidar explicitamente aqueles que "não se enquadram nos padrões de comportamento" da era Bolsonaro.

A sociologia e a antropologia cultural têm um arsenal de determinações para qualificar esse estado de coisas. Uma delas é a tal da "sociedade doente", na qual os códigos morais e sociais sofrem tal deterioração que acabam por descambar na barbárie.

Esse é o processo na qual as sociedades brasileiras estão vivendo. Fechamos os olhos para a deterioração social e moral nos últimos 30 anos e agora os portões do inferno foram abertos.

Estamos em um beco sem saída, em um poço sem fundo, e não há conciliação possível. E não se trata apenas de escolher um lado ou combater as forças obscurantistas e medievais. É uma questão de resgatar e manter valores civilizados e de respeito aos direitos humanos, algo que nunca se consolidou no Brasil

A letra da canção "Won't Get Fooled Again", possivelmente a melhor música do Who, tristemente ilustra esse fim dos tempos brasileiros, mas de forma invertida. "Não seremos enganados novamente", brada o narrador da letra em um contexto distópico no futuro. No caso brasileiro, estamos constantemente sendo enganados, o tempo todo, e novamente, e novamente, e novamente…

 

Sobre os Autores

Marcelo Moreira, jornalista, com mais de 25 anos de profissão, acredita que a salvação do Rock está no Metal Melódico e no Rock Progressivo. Maurício Gaia, jornalista e especialista em mídias digitais, crê que o rock morreu na década de 60 e hoje é um cadáver insepulto e fétido. Gosta de baião-de-dois.

Sobre o Blog

O Combate Rock é um espaço destinado a pancadarias diversas, com muita informação, opinião e prestação de serviços na área musical, sempre privilegiando um bom confronto, como o nome sugere. Comandado por Marcelo Moreira e Mauricio Gaia, os assuntos preferencialmente vão girar em torno do lema “vamos falar das bandas que nós gostamos e detonar as bandas que vocês gostam..” Sejam bem-vindos ao nosso ringue musical.
Contato: contato@combaterock.com.br

Blog Combate Rock