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Roger Waters esfrega em nossa cara: estamos desaprendendo a gostar de rock

Combate Rock

11/10/2018 06h52

Marcelo Moreira

Por mais que seus shows sejam gigantescos e sempre em estádios lotados, Roger Waters jamais imaginaria que seria o personagem principal do dia no Brasil e que seria o assunto mais comentado em redes sociais em todo o mundo no dia seguinte ao seu primeiro show paulistano da atual turnê.

O ex-baixista e vocalista do Pink Floyd, no Allianz Parque, estádio do Palmeiras, arrancou vaias e aplausos ao criticar por duas vezes a candidatura de Jair Bolsonaro (PSL), identificado como representante da extrema-direita, e também com frases no telão batendo no "neofascismo", na indústria militar mundial e nos criminosos que ganham dinheiro com tráfico de drogas e seres humanos.

Ele conseguiu irritar até mesmo os torcedores palmeirenses quando levantou um cartaz com a frase "Fuck the Pigs" – o músico inglês estava tocando no estádio do Palmeiras, que tem o porco como um dos mascotes.

O que os idiotas ignorantes não sabem é que o Pink Floyd tem uma música chamada "Pigs", do álbum "Animals", de 1977, que tem temas baseados no livro "A Revolução do Bichos", do escritor inglês George Orwell (1903-1950), que é uma feroz crítica aos regimes políticos totalitários. Waters aproveitou uma provocação de um jornalista americano no ano passado e passou, discretamente, a associar o cartaz ao presidente Donald Trump e seus apoiadores.

Frases nos telões do show de Roger Waters, na terça-feira (FOTOS: REPRODUÇÃO/TWITTER E YOUTUBE)

Toda a celeuma e polêmica em volta das questões políticas no show de Roger Waters evidenciou uma triste situação: estamos rapidamente desaprendendo a apreciar e gostar de rock.

Não se trata somente de uma questão pontual de desconhecimento sobre a carreira do artista ou das letras em inglês. Trata-se de um comportamento escandaloso onde se questiona a liberdade de expressão, opinião e até de imprensa.

A vaia faz parte do jogo, e gente com estofo e status de lenda, como o violonista João Gilberto, sempre tirou de letra – quem não se lembra do "vaia de bêbado não vale?", disparado em uma apresentação de inauguração de casa noturna em São Paulo cuja acústica era ruim.

Então… as vaias fazem parte do jogo, e as vaias de um público ignorante, desinformado e até mesmo engrandeceram o gigante artista que Waters é, por mais que, no começo, ele tenha ficado confuso e até constrangido com o que estava acontecendo. Certamente, quando informado do contexto, ao final do do primeiro show, ficaria orgulhoso de sua "peraltice política".

A incompreensão a respeito do espetáculo e a forte polarização política em época de eleição acaba por provocar situação inusitada.

É o estúpido que filma o palco e posta nas redes sociais vibrando com a vaia supostamente estrondosa que estaria supostamente impedindo o músico de continuar o show. Então o cara vai ao espetáculo e fica feliz quando o músico não toca? Como assim? Depois de pagar R$ 800 pelo ingresso?

E o que dizer de gente esbravejando nas redes sociais contra as inserções políticas – jornalistas importantes, inclusive?

Essa gente ficou inconformada com o posicionamento político de Waters no palco contra Bolsonaro e suas posições retrógradas e medievais.

"Músico tem de tocar e cantar e só, não tem de falar de política no palco", escreveu um alucinado, que ficou irado porque a mensagem do cantor batia no seu candidato.

Ou o que dizer de outro que chamou Waters de irresponsável por falar de política em um momento de eleição presidencial polarizada?

Sua "preocupação" não era ideológica, mas por questões de "segurança", já que poderia haver tumulto e brigas generalizadas – alguns amigos até relataram bate-bocas e até uns empurrões entre as duas turmas.

Como seria se Waters elogiasse Bolsonaro? Como reagiriam os coitados ignorantes que o vaiaram nesta terça-feira (9)?

O que diriam esses mesmos cidadãos tão hostis a quem critica o candidato fascista sobre as constantes manifestações políticas no palco de artistas como Lobão e Roger Moreira, do Ultraje a Rigor?

Por que esses mesmos ignorantes ficaram calados quando Lobão, em ato de extrema falta de educação, mandou a então presidente Dilma Rousseff tomar no cu em um show, ainda que esvaziado, em 2015, em São Paulo?

Por que não se manifestaram quando Roger, na abertura de um show dos Rolling Stones no Rio de Janeiro, em 2015, destratou e xingou alguém na plateia por conta de um questionamento sobre seu posicionamento político?

Quando a manifestação política no palco é de direita ou contra o PT pode? Quando alguém manifesta apoio à esquerda brasileira vira escândalo por quê?

Telão do Allianz Parque no show de Roger Waters (FOTO: REPRODUÇÃO/TWITTER)

Recentemente o guitarrista Tom Morello, do Rage Against the Machine e da banda de Bruce Springsteen, esteve por duas vezes no Brasil e estampou "Fora, Temer" em sua guitarra e apareceu com bonés do MST nas entrevistas. Cadê a patrulha? Ou será que os mesmos ignorantes que reclamam de Roger Waters não perceberam Morello – ou, na verdade, sequer o conheciam?

Roger Waters fala de política no palco desde que criou o Pink Floyd, em 1965, e pegou cada vez mais pesado na carreira solo, em especial neste século.

Será que ninguém lembrou do início da turnê, nos Estados Unidos, no ano passado, quando o músico perdeu patrocínios de US$ 4 milhões por conta das constantes críticas ao presidente Donald Trump nas entrevistas e durante os espetáculos? Ou das constantes brigas com artistas que se apresentam em Israel, como Radiohead, Gilberto Gil e Caetano Veloso?

Só imbecis se surpreenderam com as veementes críticas ao fascismo e aos ditadores feitas no show, além do cartaz "Fuck the Pigs". (Sério mesmo que teve palmeirense que ficou ofendido? É muita burrice…)

Estamos desaprendendo a curtir rock. Desde cedo o rock foi oposição, foi atitude, foi um modo de vida. Mas, acima de tudo, sempre foi música e entretenimento.

Antes de tudo, música é arte, passando ou não uma mensagem, seja esta política ou não.

Quando megashows se transformam em qualquer coisa, menos espetáculos de rock, estamos perdendo em todos os sentidos.

Quando o público rejeita a música e prefere transformar a pista e as arquibancadas em uma balada, onde fazer selfie e gravar no celular é mais importante do que a música nos alto-falantes, é porque deixamos de apreciar a arte.

E não há como não relacionar tal comportamento com a forma de como as pessoas hoje se relacionam com a música. O comprometimento acabou.

A música perdeu valor cultural – virou uma coisa descartável, muito fácil de ser obtida. Desvalorizada, deixou de fazer parte do universo intelectual da maioria das pessoas como um bem cultural.

Essa visão de desprezo foi transferida para as pistas de estádios e áreas vips de grandes shows. a maioria de quem esteve no mesmo Allianz Parque para ver The Who, no ano passado, certamente deixou passar a carga dramática e política de duas músicas monstruosas, "Won't Get Fooled Again" e "Baba O'Riley", para não falar do libelo libertário que foram as músicas da ópera-rock "Quadrophenia".

É óbvio que não devemos exigir uma carga imensa de informações a respeito de determinado artista de todos os espectadores.

Em shows gigantes, é de se esperar que pelo menos dois terços sejam apreciadores de rock, mas não fãs ardorosos do artista em questão, seja U2, Iron Maiden, The Who, Guns N'Roses ou Rolling Stones.

No entanto, ao vaiar um artista por uma questão tão prosaica quanto um posicionamento político e, em seguida, criticá-lo e ofendê-lo por isso, relevando a questão musical, o espectador brasileiro de grandes shows e roqueiros que aderiram a essa manifestação demonstram total indigência intelectual.

Essa gente não teve vergonha de passar vergonha em todos os ambientes, virtuais e reais.

Consciente ou não, boa parte desse povo encampa a visão deformada e deturpada dessa extrema-direita indigente culturalmente, com apoio dos medievais líderes evangélicos, de que arte deve ser insípida, inodora e incolor. É a tal da arte sem partido – música sem partido, teatro sem partido, cinema sem partido, literatura sem partido, escola sem partido… Em que planeta esse povo vive?

A contaminação da música pela guerra eleitoral e pela perspectiva de termos como presidente eleito uma pessoa que dissemina o ódio e menospreza a política interferiu de vez na forma como a maioria das pessoas vê o mundo.

Estamos deixando de torcer pelo nosso time, de curtir a nossa música e de manter muitas amizades. Talvez seja o preço de devemos pagar por nossas escolhas ao longo de parte expressiva de nossas vidas.

Uma coisa, entretanto, fica evidente: o clima tenso e pesado no Brasil está fazendo com que muitas pessoas percam a capacidade de curtir coisas que outrora foram importantes em suas vidas.

Foi preciso que um veterano roqueiro inglês viesse a São Paulo para esfregar em nossa cara que um ex-capitão fascista e um "poste" de um ex-presidente preso estão fazendo com que desaprendamos a gostar de rock.

 

 

Sobre os Autores

Marcelo Moreira, jornalista, com mais de 25 anos de profissão, acredita que a salvação do Rock está no Metal Melódico e no Rock Progressivo. Maurício Gaia, jornalista e especialista em mídias digitais, crê que o rock morreu na década de 60 e hoje é um cadáver insepulto e fétido. Gosta de baião-de-dois.

Sobre o Blog

O Combate Rock é um espaço destinado a pancadarias diversas, com muita informação, opinião e prestação de serviços na área musical, sempre privilegiando um bom confronto, como o nome sugere. Comandado por Marcelo Moreira e Mauricio Gaia, os assuntos preferencialmente vão girar em torno do lema “vamos falar das bandas que nós gostamos e detonar as bandas que vocês gostam..” Sejam bem-vindos ao nosso ringue musical.
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