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Copa do Mundo: reconciliação, expiação de pecados e resgate da 'amarelinha'

Combate Rock

22/05/2018 07h00

Marcelo Moreira

Em que momento o o amor acabou? A adesão às camisas amarelas por parte dos apoiadores do impeachment da presidente Dilma Rousseff foi apenas a assinatura do divórcio. Efetivamente, quando a seleção brasileira passou a ser mais odiada do que celebrada em seu próprio país?

A baixa popularidade do selecionado nacional se confunde com o clima de crise econômica eterna e com a desesperança que tomou conta da política em razão dos inúmeros e constantes casos de corrupção.

São inúmeras as manifestações de roqueiros outrora engajados e progressistas que estão de mal com a camisa amarela e com o que chamam de "seleção internacional milionária e sem vínculos com a alma brasileira.

O mais recente e contundente foi André Jung, ex-baterista do Ira!, que vociferou contra o futebol nacional e a seleção nas redes sociais, afirmando categoricamente que torcerá contra o Brasil na Copa da Rússia. "A camisa amarela virou símbolo do pato", afirmou em várias entrevistas, ao se referir ao "pato amarelo da Fiesp", marca da campanha da entidade contra o excesso de impostos e também dos movimentos contra o PT e Dilma Rousseff.

Já não existe mais aquele clima de já ganhou – e faz tempo. Coisa esquisita, mas tão esquisita, que houve um empresário do interior do Brasil que chegou a pensar em processar a CBF e a Rede Globo, após a Copa de 2010, por conta do clima ufanista e de vitória certa que teria sido criado – o coitado ficou com um monte de quinquilharia encalhada e queria descontar isso em alguém.

Já faz tempo que o escudo da CBF se tornou alvo de muitas das mazelas nacionais, futebolísticas ou não. O enfraquecimento permanente de nossos campeonatos por conta da saída endinheirada de jogadores e as gravíssimas denúncias de corrupção contra três ex-presidentes da entidade contribuíram para isso, mas muitas das culpas que atribuem à camisa amarela são infundadas e injustas.

O símbolo foi apropriado pelos manifestantes que foram enganados pelos movimentos pró-impeachment – quanto a isso, não há o que fazer.

Parte da população ficou irada e contrariada com essa apropriação, e passou a associar a camiseta aos "golpistas" e àqueles que não aceitaram a perda da eleição nas urnas.

Por mais compreensível que seja esse sentimento, é uma das tantas injustiças cometidas neste país onde respeito e honestidade são diariamente vilipendiados, ainda mais em tempos de polarização política radical e odiosa.

É um exercício complicado e difícil, e pode até ser perigoso em alguns casos, mas é necessário ser feito, seja em tempos de Copa do Mundo ou não: a camisa amarela da seleção brasileira é um patrimônio nacional e do do futebol mundial. Precisa ser dissociada do clima do clima político fratricida e bélico.

Por décadas foi o maior símbolo da nação brasileira, ao lado do mágico Pelé. A camisa amarela simbolizou, no passado, um Brasil que que aspirava dar certo, e que em alguns momentos deu certo.

Por mais torta que fosse a utilização dos símbolos, a camisa amarela conspirava a favor de um clima de união, ainda que temporária. Desde que a nação parou para ouvir no rádio, em locais públicos, a semifinal contra a Itália, em 1938, na Copa da França, a relação do torcedor com a "amarelinha" nunca foi mais a mesma.

Dia de jogo da seleção era sagrado, era dia importante, mesmo que fosse amistoso. Nos anos 60 e 70 o país parava para ver e ouvir o jogo. São muitos a lembrar de como a seleção massacrou a Inglaterra por 5 a 1 na Taça das Nações, no Maracanã em 1964. Foi um evento.

Ou então na decepção que acometeu a nação quando a seleção sofreu o empate no modorrento 2 a 2 no mesmo Maracanã contra a França, em 1977.

O tropeço em um simples amistoso durou dias, com críticas pesadas ao time, e a coisa piorou meses depois, antes da Copa da Argentina, quando houve o jogo de retribuição, em Paris, no qual o genial Platini fez o gol da vitória, de falta.

A seleção fazia parte do dia a dia do povo, e ninguém ficava indiferente a um jogo, amistoso ou de Copa do Mundo.

Time campeão de 1970: o melhor time de todos os tempos para muitos jornalistas estrangeiros (FOTO: DIVULGAÇÃO)

A desilusão com o momento político, com a polarização transformada em ódio, com a corrupção generalizada que atingiu também o futebol e com a qualidade do jogo em si, dentro do campo, aquém do esperado nos estádios do Brasil, jogaram a camisa amarela e a outrora paixão pela seleção na lata do lixo.

Vilipendiada e sequestrada por grupelhos políticos execráveis e por uma massa de manobra ignara e gigante, a camisa amarela da seleção paga o pato (literalmente) pelos desmandos e pelas patifarias ocorridas em Brasília e na CBF.

Sua importância foi reduzida pela apropriação nojenta de seu legado e de seu simbolismo por grupos avessos à democracia inconformados com a derrota eleitoral em 2014 – com consequências nefastas advindas com o impeachment de Dilma, em especial o governo incrivelmente ruim e incompetente de Michel Temer.

A camisa amarela e a seleção nacional são as que menos têm culpa na vertiginosa decadência política, moral e econômica do país. Deveriam servir de ponto de referência para uma espécie de resgate do discurso/debate civilizado e da convivência pacífica e cordial que um dia quase atingimos nas últimas três décadas.

Bradar contra o clima de copa e xingar o futebol e a seleção, na maioria dos casos, não passa de birra de gente imatura e sem capacidade de compreensão do que significam os símbolos tão importantes do futebol mundial.

Na maioria dos casos, não passa de mimimi e birra de revoltadinhos de shopping, que certamente vestiu a amarela nos protestos ou ficou constrangedoramente incomodados com as manifestações contra Dilma, contra o PT, contra a corrupção e contra "tudo o que está aí".

Os mesmos que fazem beicinho e birra contra a seleção são os que torcem para clubes de futebol que foram beneficiados com patrocínios esquisitos de empresas de petróleo ou bancos públicos; são os mesmos que torcem para times beneficiados com estádio que caíram no colo com construção movidas a propinas de empreiteiras; são os mesmos que apoiam e briga por times sustentados por empresas "oficiais" de agiotagem. Curioso que nada disso choca os torcedores (ou não) que vilipendiam a camisa amarela.

Hipocrisia generalizada e falta de vergonha pelos casos de corrupção ainda mais graves que surgiram com a deposição de Dilma Rousseff são artigos de sobra em um ambiente tóxico e deteriorado como é o da sociedade brasileira – a mesma que faz questão de ignorar problemas gravíssimos urgentes, como a falta de moradia e as perigosas ocupações de prédios abandonados.

Para os incapazes de separar as coisas e entender que ainda há paixão dentro dos gramados, só resta lamentar a pobreza de espírito e a falta de respeito por duas  instituições que são reverenciadas no mundo inteiro.

A camisa amarela e a seleção brasileira são muito maiores e muito mais importantes do que as hidrofobia política que domina o país.

Certamente muitos dos "do contra" repetirão os chamados "terroristas" que lutavam contra a ditadura militar e que abominavam a "paixão" do torcedor pela seleção, o que consideravam uma "grosseira manipulação" da população.

Só que bastou o Brasil empatar o jogo na abertura da Copa de 1970, contra a Checoslováquia, para abandonassem todas as suas convicções e passassem a torcer loucamente por Pelé, Gérson, Rivellino, Tostão e os outros, como ficamos sabendo por meio de relatos dos "terroristas" anos depois.

Exemplo de superação e de separação das coisas – mesmo nos anos de chumbo, uma coisa era uma coisa e outra coisa era outra coisa? Por que não?

Esqueça a marra de Neymar, a arrogância de Daniel Alves, a falta de empatia de caras como Willian, Philippe Coutinho e Firmino com a torcida brasileira. Tente deixar para trás a tragédia do Mineirão 7 a 1.

Tente esquecer que os últimos três presidentes da CBF estão condenados por crimes de corrupção ou sofrendo investigações pesadas.

Copa do Mundo é um evento diferente, um tempo diferente, um outro mundo. É um período onde é possível ver futebol sem necessariamente ansiar pela destruição do time de coração do garçom do seu bar, ou do gerente do seu banco, ou da médica de seu filho.

É exagero dizer que pode se transformar em um tempo de reconciliação, mas certamente é um período onde é possível odiar menos e curtir mais.

A camisa amarela poderá até incomodar muitos no começo, mas são grandes as chances de provocar sorrisos e de mudar estigmas ao final do certame.

Esqueça a camiseta "oficial" de R$ 499. Resgate a velha camisa de outras copas, amarela ou azul, e torça de forma vigorosa – mesmo que contra, mas com respeito às duas instituições.

Que as pessoas consigam separar a camisa amarela das manifestações recheadas de patifes que levaram ao impeachment; que consigam separar a seleção e seus jogadores da CBF em si, que não entra em campo e que se tornou covil de corruptos. A camisa amarela e a seleção brasileira são muito, mas muito maiores do que isso – ouso dizer, indo além: é muito maior do que tudo.

E, em tempos de Copa do Mundo, sempre é bom relembrar a frase emblemática de Bill Shankly, técnico do Liverpool entre 1959 e 1974: "Futebol não é uma simples questão de vida ou morte. É muito mais do que isso."

Sobre os Autores

Marcelo Moreira, jornalista, com mais de 25 anos de profissão, acredita que a salvação do Rock está no Metal Melódico e no Rock Progressivo. Maurício Gaia, jornalista e especialista em mídias digitais, crê que o rock morreu na década de 60 e hoje é um cadáver insepulto e fétido. Gosta de baião-de-dois.

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O Combate Rock é um espaço destinado a pancadarias diversas, com muita informação, opinião e prestação de serviços na área musical, sempre privilegiando um bom confronto, como o nome sugere. Comandado por Marcelo Moreira e Mauricio Gaia, os assuntos preferencialmente vão girar em torno do lema “vamos falar das bandas que nós gostamos e detonar as bandas que vocês gostam..” Sejam bem-vindos ao nosso ringue musical.
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