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Don Letts e a inquietação punk

Maurício Gaia

16/08/2017 07h00

Durante dois dias e pouco, tive a oportunidade de estar com o cineasta e DJ inglês Don Letts. Cara fundamental na primeira onda do punk inglês, ele veio a São Paulo para o In-Edit Brasil – Festival Internacional do Documentário Musical – do qual faço parte da equipe de produção.

Don Letts é um cara inquieto e tudo nele é movimento: durante os poucos dias que esteve em São Paulo, esteve em lojas de discos, de equipamentos de som, foi meio que "sequestrado" pelo pessoal da AntenaZero, rodou por diversos lugares da cidade, além de cumprir a agenda oficial do evento.

Na minha agenda, já estava previsto que na sexta-feira (16/06), eu estaria no Cine Olido, mediando um bate-papo dele com o público após a exibição de seu filme "Punk Attitude". No entanto, acabei tendo um primeiro encontro com ele no dia anterior, em um restaurante nos Jardins – eu estava almoçando com o diretor e produtor do filme "O Som do Tempo", quando entram Letts e o pessoal da rádio Antena Zero. Fomos apresentados e disse a ele que, no dia seguinte, estaríamos juntos novamente.

Na sexta, um pequeno imprevisto – tive que ir à Galeria do Rock, para encomendar mais camisetas do festival. Isso fez com que eu chegasse esbaforido no sala Olido (ok, é do lado, mas foi assim), mas cheguei a tempo de fazermos a apresentação da sessão – não sem antes ouvir um "Fora, Maurício", de um nobre espectador. Saindo da sala, Don Letts vira pra mim e manda: "cara, você está correndo demais. Pare um pouco, tome uma cerveja, você merece". Ganhou pontos.

Após o bate-papo com a platéia, fomos para o hotel em que ele estava hospedado e pudemos conversar um pouco mais sobre outras coisas, que não fossem o festival. Seu próximo documentário – "já está escrito, tudo mais, só preciso de alguém que financie" – é sobre afrofuturismo, um tema que vem me interessado ultimamente. Comentei sobre uma amiga, que está na Nigéria, justamente fazendo seu doutorado sobre o assunto. "O futuro está na África", concordamos.

Lembrei durante o bate-papo com a platéia como que ele se tornou cineasta: "Naquela época, na Inglaterra, um jovem negro como eu seria motorista de ônibus. Eu me recusei a isso. Fui ser DJ e depois, ganhei uma câmera super-8."

No dia seguinte, meu telefone toca, era uma das produtoras do festival, perguntando se eu não poderia ir com Don Letts a uma loja de equipamentos de som no centro da cidade. Ok, vamos lá. Encontrei com ele na porta do hotel e rumamos para a loja do nosso chapa DJ, na R. 24 de Maio.

No caminho, ele fala "ah, agora, eu posso dizer que conheço a São Paulo de verdade". Chegando perto da galeria onde fica a loja, uma batucada chama a atenção dele e rumamos para lá: era o pessoal da Torcida Independente do São Paulo fazendo um ensaio. Expliquei para ele quem eram os caras e ele diz "não gosto de futebol. No meu tempo, tinha o lance dos hooligans e era um ambiente muito racista. Sei que aqui é importante, mas não me pega".

Dentro da loja, uma vitrola chama atenção. Pergunta o preço em libras, "670 pounds". Ele reage com uma careta e comenta "é o tipo de lugar que a gente não pode contar pra mulher que frequenta". Dali, logo rumamos para a loja do Tony Hits, especializado em black music brasileira. Ali, nada particularmente chama a atenção de Don Letts. "Não conheço nada de música brasileira, só um pouco dos clássicos: Caetano, Chico, esses caras". Tiramos uma foto com o pessoal da loja e logo voltamos para o hotel, pois dali, teríamos que rumar para a Cinemateca Brasileira, onde teria um novo bate-papo, desta vez com Gastão Moreira, seguido de um DJ session, comandada por ele.

No caminho, mais impressões sobre a cidade: "eu não lembro a primeira vez que estive em São Paulo. Talvez com Big Audio Dinamyte.. Com o U2, na tour de Vertigo, com certeza, mas não deu pra conhecer a cidade" (nota: Don Letts também esteve em São Paulo na edição de 2012 do In-Edit Brasil). "Tem muita coisa interessante por aqui. A Parada Gay é amanhã, né? Vou tentar ver algo antes de ir para o aeroporto".

Falamos rapidamente sobre música. Aparentemente, não existe nenhum artista novo que atraia sua atenção: "Sou um homem velho. Sei que tem muita coisa boa, mas não é para mim", disse. Chegando na Cinemateca, a fome apertou: recusou os salgados do café vegetarianos e foi firme em um quibe. Não quis cerveja: "não bebo cerveja, nem vinho, não gosto". O quibe não estava bom, "prove um pedaço". Realmente, estava seco. O jeito foi segurar a fome, pois já estava na hora de apresentar a sessão de "Two Sevens Clash", seu filme mais recente, que mostra como os punks ingleses caíram de boca na música jamaicana.

Depois, outro bate-papo, agora, com Gastão Moreira e o público, seguido da DJ session, onde Don Letts despejou toneladas de dub, transformando a área externa da Cinemateca numa pista de dança.

Ao sair de lá, voltando para o hotel, desejei a ele boa viagem. Ele disse: "tenho certeza que iremos nos encontrar novamente. Existe uma conexão entre nós". Bom, provavelmente, nem ele, nem eu sabíamos que a profecia dele iria se realizar poucas horas depois, no domingo pela manhã. Eu precisava encontrar Marcelo Aliche, diretor do festival, para retirar uns materiais e acabamos combinando de nos encontrar na frente do hotel onde Don Letts estava hospedado e, ainda na parte da manhã, já rumaria para o aeroporto.

Cheguei na frente do hotel e fiquei ali esperando Aliche, quando escuto Letts me chamar "Maurício!! O que você está fazendo aqui?" Aí, ficamos conversando. O tal do quibe realmente não tinha feito bem ao inglês, "passei mal à noite"; foi tentar ver um pouco da Parada Gay, a poucas quadras do hotel, mas ainda era muito cedo, "não tem ninguém lá".  Além disso, uma outra constatação: "como esses garotos podem se dizer punks, se ainda moram e são sustentados pelos pais? Isso não tem nada de punk", disse.

Aliche chegou, nos despedimos e perguntei: "ainda vamos nos ver novamente, ou ja gastamos a sua profecia de ontem hoje?" Letts riu e disse, "nem, vamos nos encontrar novamente'.

Eu e O CARA (Foto: In-Edit Brasil)

Entre uma corrida e outra, um Uber, um encontro em porta de cinema e outro, Don Letts sempre ressaltava a importância em não aceitar as coisas como querem que seja, que o indivíduo tem como fazer suas próprias escolhas e ter condições de realizá-las, não interessa como. Voltei para o metrô pensando em quais novos planos colocarei em prática.

Sobre os Autores

Marcelo Moreira, jornalista, com mais de 25 anos de profissão, acredita que a salvação do Rock está no Metal Melódico e no Rock Progressivo. Maurício Gaia, jornalista e especialista em mídias digitais, crê que o rock morreu na década de 60 e hoje é um cadáver insepulto e fétido. Gosta de baião-de-dois.

Sobre o Blog

O Combate Rock é um espaço destinado a pancadarias diversas, com muita informação, opinião e prestação de serviços na área musical, sempre privilegiando um bom confronto, como o nome sugere. Comandado por Marcelo Moreira e Mauricio Gaia, os assuntos preferencialmente vão girar em torno do lema “vamos falar das bandas que nós gostamos e detonar as bandas que vocês gostam..” Sejam bem-vindos ao nosso ringue musical.
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