Dire Straits e Peter Gabriel no metrô - e a face sombria do desemprego
01Marcelo Moreira
Era um momento de troca de música no telefone celular, em uma modorrenta tarde em um modorrento vagão do metrô, eis que surge um som ambiente de saxofone. A música era facilmente reconhecida: "Your Latest Trick", do Dire Straits.
O vagão da linha verde do metrô de São Paulo, bem abaixo da avenida Paulista, estava bem cheio, mas não lotado. No meio, dois rapazes com pouco mais de 30 anos de idade. O do sax era alto e vestia bermuda e camisa do Black Sabbath preta. O do violão com cordas de aço era baixo, vestido com um paletó marrom e camisa de botão amarela, calça jeans preta.
Todos se surpreenderam, e o saxofonista assoprava forte, dançava e curtia o que tocava. De repente, um medley – sai Dire Straits, entra Peter Gabriel com a maravilhosa "Solsbury Hill", ambas instrumentais e bem tocadas.
Antes da próxima estação, vem Jorge Ben, com "Fio Maravilha". Neste ponto, todos dançavam e cantavam. Andando pelo vagão, o saxofonista recolhia uns trocados.
Na parada, eles rapidamente trocam de vagão, olhando assustados para os lados. Era hora de repetir a dose e recolher mais alguns vinténs. "Os urubus nos odeiam, já tentaram tomar o meu sax", diz o mais alto, que aqui chamaremos de Luís.
Economista desempregado, ex-funcionário de banco nacional, da mesa de análise financeira, une o útil ao não tão agradável. "É o que dá para fazer entre uma escassa entrevista de emprego e outra."
No outro vagão, no sentido Vila Madalena, repetem a música do Dire Straits, encaixaram Eric Clapton ("Layla") e para acabar com "Saudosa Maloca", de Adoniran Barbosa.
Essa tem sido a rotina três vezes por semana de Luís e Carlos (nome fictício também), sempre tocando por trocados ao mesmo tempo em que driblam e fogem dos seguranças do metrô, os urubus, que se vestem de preto.
Ao contrário de metrôs de várias partes do mundo, é proibido tocar durante as viagens e nas estações após os bloqueios (catracas). Nas áreas antes dos bloqueios, só com autorização da direção do metrô, e somente em eventos específicos, marcados com antecedência.
Devido a isso é que eles não se identificam, com medo de retaliações e de serem proibidos diretamente de praticar a "contravenção".
Carlos é profissional da tecnologia da informação *TI) com pós-graduação na USP e mestrado nos Estados Unidos. E é mais um desempregado na Grande São Paulo. "Toco guitarra e violão e tenho duas bandas de rock e uma de samba. Era hobby para mim, mas me divertia. Hoje paga um pedaço das contas que sobraram."
São dois retratos da recessão pesada em que o Brasil mergulhou. Profissionais qualificados que precisam fugir dos seguranças para conseguir dois minutos de atenção entre as estações para amealhar alguns trocos – e sempre de olho nas portas e nas escadas das estações, de olho nos "urubus".
Só foram repreendidos uma vez, na estação Brigadeiro, quando quase tiveram os instrumentos apreendidos. Ficaram detidos em uma sala, segundo Luís, e tomaram um sermão. Liberados 20 minutos depois, tiveram de sumir por duas semanas, de acordo com Carlos.
"O pessoal que anda de metrô, em determinados horários, na linha verde (Vila Prudente-Vila Madalena), é mais acessível, mais tolerante e, ao que parece, um pouco mais escolarizado e mais abastado. Entende a nossa música, tem referências, e gostam do que ouvem. É incomparável o que recebemos nos vagões se comparado com a execução na rua, na avenida Paulista. Por isso arriscamos", diz Luís.
Por motivos óbvios, não permitiram fazer fotos. No entanto, toparam falar rapidamente atrás de uma pilastra, na plataforma da estação Vila Madalena. Os dois são roqueiros, e estabeleceram a fórmula que agrada, segundo perceberam.
"Dois rocks, de preferência algum hit oitentista e noventista, e uma música brasileira. Não falha. Somos cercados e as pessoas realmente curtem, na maioria das vezes. Os roqueiros, aparentemente, são os que mais se surpreendem e mais nos incentivam, que mais fazem pedidos. Por isso, são os que mais contribuem", relata Carlos.
Ele evitam falar quanto conseguem ganhar nas três vezes semanais em que se arriscam nos vagões. Dizem que não é muito, mas que não é desprezível e que tem ajudado. "Estaríamos mais encrencados sem essa graninha", diz sorrindo Luís.
Carlos conta que cresceu ouvindo Led Zeppelin, Iron Maiden, Pearl Jam e Nirnava, entre outras coisas, no Ipiranga, bairro onde mora até hoje. Detesta hard rock, mas toca em uma banda especializada em Whitesnake, Bon Jovi, Motley Crue, Ratt… "Mas eu desconto tocando músicas mais contemporâneas em outro grupo."
Já Luís é da zona norte, da Parada Inglesa. É mais eclético, gosta de jazz e MPB, mas ama o rock. É outro que mergulhou no ritmo graças ao grunge e ao Guns N' Roses. "Brinco um pouco na guitarra e no piano, mas adoro mesmo é o saxofone e a flauta transversal. Por causa da flauta, comecei a amar MPB e samba."
Eles perderam três composições, e não queriam perder a quarta. Alegres e bem-humorados, perderam o brilho do sorriso quando tentaram falar do futuro. "Não há futuro, infelizmente. São sete meses procurando emprego, trabalhei em duas multinacionais, falo inglês e espanhol, tenho mestrado no exterior. O que me resta agora, hoje? Nada. Pior, para quem tem menos qualificação, é muito menos nada ainda", reclama Carlos.
O trem parou na plataforma. Eles se despedem e correm. Antes da porta fechar, peço de forma humilde: "Toquem The Who e Black Sabbath, mas não toquem Raul…". Ainda deu tempo de ouvir a resposta de Carlos: "Boa ideia, grandes bandas, e jamais tocaremos Raul", em meio a uma forte gargalhada. É claro que eles tocam Raul Seixas, para azar de quem tiver de ouvir…
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