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Vai faltar cerveja de cortesia para os músicos que aceitarem tocar de graça

Combate Rock

29/08/2016 06h30

Marcelo Moreira

– Eu ofereço R$ 60 para vocês tocarem no meu pub.

– Para com isso, é muito pouco, tem de ser no mínimo R$ 100.

– Não dá, cara, é R$ 60, é o que eu pago para todos os que tocam aqui.

– Vamos ser razoáveis, pelo menos R$ 80, para que cada um consiga ao menos pagar a gasolina e tomar alguma… Somos um quarteto.

– Cara, é o que posso pagar: R$ 60 para vocês. Quero que vocês venham, mas se não der tem outra banda que está fila.

– Mas R$ 60 para cada um é uma indignidade. Não cobre nem a manutenção de nada.

– Para cada um? Quem disse isso? Ficou louco? O que eu pago é R$ 60 para a banda inteira. – Em seguida, o músico, perplexo, falou um palavrão e bateu o telefone.

O diálogo nojento acima ocorreu recentemente entre um requisitado músico de rock e blues rock de São Paulo e o dono de um bar bacana e requintado em uma cidade da Grande São Paulo no ano de 2013.

Quem pensa que o desrespeito de produtores musicais e donos de casas de shows se limitava ao heavy metal no Brasil, uma triste notícia: a desfaçatez e a falta de respeito estão disseminadas no meio musical como um todo para artistas que não são medalhões.

E por que resgato uma história de três anos atrás? Porque algo muito semelhante ocorreu há pouco em um bar da moda em São Paulo, desses cuja decoração é de bom gosto, mas caríssima, e com cardápio de boa qualidade, mas com preços bem salgados.

O músico em questão, no caso de 2013, e que pediu para não ter identificado por razões óbvias, tem uma sólida carreira no Brasil e frequentemente faz turnês no exterior, tendo inclusive gravado três CDs lá fora. Ele não acreditou quando ouviu a proposta indecorosa.

"É por essas e outras que estou diminuindo o número de apresentações no Brasil. Acaba não compensando. Há lugares legais na zona leste de São Paulo, na zona sul, no ABC que abrem espaço para o rock com levada blues e também para o blues tradicional, mas alguns deles simplesmente desrespeitam os músicos com cachês que mal cobrem o combustível. E os caras se recusam a pagar R$ 100 para cada músico de um quarteto, quando às vezes R$ 400 é o valor gasto em uma única mesa. Não dá para sair de casa, levar equipamento que custa em torno de R$ 10 mil, para receber apenas R$ 100 por uma hora e meia ou mais de espetáculo", desabafou.

No caso mais recente, era um show acústico com uma dupla de violonistas formada por dois músicos conhecidos no meio do rock pesado paulista, que foram desrespeitados não só pela oferta ridícula de cachê, mas também pela arrogância e desprezo do contratante.

Mudança de hábito

O assunto, de tempos em tempos, volta à tona, mas ganha ares de desespero quando se observa que comportamentos cada vez mais parecidos com os narrados acima se tornam frequentes.

Nas redes sociais, são comuns e corriqueiros os relatos de "promotores" e proprietários de bares ou "empreendedores" do ramo de entretenimento oferecerem a "chance" de um artista/banda tocarem tendo como "recompensa" a "exposição" proporcionada. Ou seja: é a "chance" de tocar de graça, um favor, digamos assim…

Então é isso? O artista apenas "mostra" seu trabalho? Não precisa ser remunerado? Tem de agradecer de joelhos a "chance" de tocar de graça e ser aceito pela burocracia cultural – no caso do Poder Público?

O comportamento de produtores culturais e dono de bares encontra respaldo em situações desagradáveis como a descrita no começo do texto – mesmo que haja "ideologias" envolvidas, como ocorreu anos atrás quando coletivos de tendência esquerdista passaram a ter muita influência em administrações municipais e mesmo no Ministério da Cultura.

Tocar de graça não deveria ser uma opção. Essa degradação começa a afetar artistas que têm trabalhos respeitáveis, mas que não tem penetração no circuito de grandes casas de shows – quando muito, em algum festival promovido pelo Sesc.

Esse tipo de profissional da música sempre conseguiu viver razoavelmente bem na imensa rede de bares das grandes cidades, mas aos poucos o panorama começou a mudar.

Muitos amadores começaram a ocupar os espaços – e amadores no sentido literal do termo, ou seja, profissionais de outras áreas que são músicos diletantes, de final de semana, sem trabalho autoral e que toca, quando muito, em troca de algumas cervejas. E, geralmente, tocando covers – versões de clássicos do rock ou hits do momento

É uma distorção de mercado que, se não pode ser evitada, ao menos tem de ser amenizada. Entretanto, parece haver pouco interesse em impedir que essa distorção predomine. E com isso bons nomes do rock pesado, do pop rock e do blues no Brasil são escanteados.

Não faz muito tempo era bastante comum em São Paulo e nas cidades de sua região metropolitana observar na agenda cultural de uma semana cheia nomes de artistas como Baranga, Motorocker, Carro Bomba, Pedra, Tomada, Cracker Blues, Bando do Velho Jack, Michael Navarro, Sergio Duarte, Ivan Marcio e muitos outros tocando em casas de vários tamanhos e portes. Pegue hoje a agenda musical de qualquer site atualizado e decente e observe a enxugada de eventos com artistas de porte médio como os citados.

E os novos nomes?  Cadê o circuito de música alternativa? "Cansei de tocar por dinheiro de pinga em bares bem legais, com boa estrutura. O rock e o pop rock de bandas iniciante está sendo asfixiado. Ninguém mais tem interesse em trabalho autoral, parte expressiva de quem se interessa por música perdeu essa característica. Ou a banda novata tem o seu público cativo, que não passa de dez ou quinze pessoas, ou então vai encontrar muitas portas fechadas", relata um guitarrista que tocou em duas bandas de certo renome nos anos 90 e 2000 e que está em vias de abrir seu próprio estúdio musical e abandonar os palcos. Também, por razões óbvias, pede para que seu nome não seja publicado para evitar consequências no futuro negócio.

O músico levantou um tópico interessante: o público se desacostumou a apreciar trabalhos autorais nas grandes capitais porque os produtores e donos de bares preferiram o dinheiro fácil ou economizar, ou então foram os produtores e donos de bares que decidiram abandonar os trabalhos autorais por que o público se desinteressou?

Acomodação

Culpar o público sempre é uma trilha perigosa, que esbarra na auto-indulgência e fatalmente esconde os reais motivos da decadência. Entretanto, é um dado que não pode ser ignorado: já faz tempo que o público que ainda aprecia rock e pop rock nas grandes cidades abandonou os novos artistas, exceto talvez em alguns locais como interior de São Paulo e em nichos localizados em Curitiba e Porto Alegre. Esse público sumiu dos bares e dos auditórios, migrou para outros tipos de programas culturais – ou pior, para outros ritmos musicais, geralmente abomináveis.

Muitos vão se apressar e dizer que a qualidade dos artistas novos é ruim, o que explicaria a debandada – ou suposta debandada. Seria um argumento válido se possível constatar que ao menos os artistas iniciantes e com trabalho inédito tivessem sido ao menos avaliados, ainda que mal e porcamente. Nem, isso aconteceu.

E então podemos chegar a uma conclusão, mesmo longe de ser definitiva: produtores culturais e donos de bares decidem economizar – ou ganhar mais pagando bem menos – contratando artistas de qualidade duvidosa, de outros gêneros musicais, ou então bandas que aceitam tocar versões de hits e clássicos, as chamadas bandas cover. Mesmo ruim, uma banda cover consegue ao menos incomodar menos do que quem toca coisas desconhecidas e próprias, disse-me uma vez um dono de bar da zona norte de São Paulo.

Mesmo recebendo porcaria oferecida pelos "empresários", o público não se importou, perdendo o interesse em música autoral, seja por acomodação ou por completo desprezo pela música em si. Então temos a desvalorização musical em todos os níveis: na produção, no empresariamento/contratação (donos de bares), no público eventualmente acomodado ou sem interesse e no músico que se sujeita a ganhar "dinheiro de pinga" em troca de cerveja.

Desolador é pouco para qualificar o estado das coisas no momento. E sair correndo em direção ao Sesc em busca de salvação não é uma alternativa para a maioria dos artistas que apresentam trabalho autoral mas que ainda não têm currículo relevante. Minifestivais bancados por prefeituras também não, já que não há espaço para tudo mundo.

E o pior é que, se os músicos resolverem jogar tudo para o alto e aceitarem tocar de graça, não vai ter nem mesmo a cervejinha de cortesia para todo mundo…

Sobre os Autores

Marcelo Moreira, jornalista, com mais de 25 anos de profissão, acredita que a salvação do Rock está no Metal Melódico e no Rock Progressivo. Maurício Gaia, jornalista e especialista em mídias digitais, crê que o rock morreu na década de 60 e hoje é um cadáver insepulto e fétido. Gosta de baião-de-dois.

Sobre o Blog

O Combate Rock é um espaço destinado a pancadarias diversas, com muita informação, opinião e prestação de serviços na área musical, sempre privilegiando um bom confronto, como o nome sugere. Comandado por Marcelo Moreira e Mauricio Gaia, os assuntos preferencialmente vão girar em torno do lema “vamos falar das bandas que nós gostamos e detonar as bandas que vocês gostam..” Sejam bem-vindos ao nosso ringue musical.
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