O dia em que James Brown salvou a América - e zombou do racismo
Marcelo Moreira
Diante dos lamentáveis incidentes envolvendo atitudes racistas no futebol brasileiro – e em outras esferas da vida brasileira -, nada melhor do que relembrar o dia em que o Rei do Soul salvou a América da guerra civil racial . Sem muito alarde, uma nova edição limitada de "O Dia em Que James Brown Salvou a Pátria", de James Sullivan (Ed. Zahar, R$ 35), uma excelente reportagem sobre um dos fatos mais graves da vida norte-americana dos anos 60.
Após o assassinato do reverendo Martin Luther King em Memphis, na manhã de 4 de abril de 1968, os Estados Unidos viraram de cabeça para baixo, tomados por centenas de distúrbios envolvendo a população negra. King era um nome mundialmente conhecido, líder negro que participou das principais manifestações pela ampliação dos direitos civis e que encabeçou diversos movimentos que enterraram definitivamente as leis racistas e segregacionistas do sul do país nos anos 60.
Em um momento tenso da vida social americana, King era visto pela direita e pela elite branca política como um elemento subversivo e desestabilizador, ainda mais depois das inúmeras vitórias em favor da população negra e também da incipiente comunidade hispânica rejeitada.
Seu assassinato por um franco atirador foi interpretado como atitude deliberada do "poder" para limitar os avanços nos direitos civis e insuflou a população de vários bairros e guetos negros pelo país. Houve protestos violentos e saques em Los Angeles, Detroit, Cleveland, Atlanta e em algumas outras cidades.
James Brown, então já consolidado como o principal artista negro dos Estados Unidos – e um dos cinco maiores entre todos -, deveria cantar em Boston na noite do dia 4 de abril. A partir do momento em que a morte do líder negro foi confirmada, as autoridades da cidade entraram em pânico, temendo a repetição dos distúrbios violentos de Los Angeles – sempre houve muitos negros no Estado de Massachussets, onde fica Boston.
De forma ardilosa, mas inteligente, o prefeito, seus principais assessores e dois parlamentares negros articularam um plano para transmitir ao vivo pela TV para todo o Estado e parte do país o show de James Brown, como forma de manter a população negra em casa naquela noite. Era a alternativa ao cancelamento do show, fato que tinha sido consumado por ordem da polícia da cidade.
Convencido de que o cancelamento do shows seria um desastre político e que poderia estimular mais ainda distúrbios, o prefeito Kevin White acatou a sugestão de assessores e vereadores negros para manter o show, mas com redução significativa de público no ginásio imenso onde seria realizado, mas com a promessa de que haveria a transmissão ao vivo.
Correndo contra o tempo, produtores do show, da emissora local de TV e funcionários da prefeitura conseguiram em seis horas colocar o plano de pé, com a concordância de Brown, reticente quanto a participar daquele circo. O cantor estava preocupado com a possibilidade de ser processado – ele tinha contrato de exclusividade com uma empresa para a transmissão de shows/filmagens.
Astuto e inteligente, James Brown percebeu que não tinha muitas opções no momento e se transformou no dono da noite de uma forma inigualável, fazendo um show memorável e, ao mesmo tempo, assumindo uma postura de líder nacional dos negros e de toda uma comunidade – logo ele, que sempre se manteve longe das discussões políticas.
A apresentação foi um sucesso, com apenas 3 mil pessoas no local e o restante vendo pela TV. Boston foi uma das poucas grandes cidades norte-americanas a não registrar nenhum conflito grave nos dias 4 e 5 de abril de 1968. Brown foi o grande artífice da noite em paz – muito também graças a suas convicções individuais, sempre a favor da educação e contra a violência como forma de reivindicar. "Protestos violentos só pioram as condições dos negros e lhes retira a legitimidade das reivindicações", costumava dizer.
Além da reconstituição fiel histórica daqueles dois e dos bastidores político-administrativos da organização/manutenção do show, Sullivan traça aquele que provavelmente é o melhor perfil jornalístico de James Brown, morto em 2006.
A excelente reportagem faz uma rápida biografia do músico e ainda encontra espaço para uma análise de sua obra e da importância do artista para a cultura norte-americana. É uma obra importante para compreender um período crítico da história norte-americana e a dinâmica da luta pelos direitos civis nos anos 60, que remete em muitos aspectos aos problemas eternos de racismo que ocorrem no Brasil.
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